Estou quase virando mesmo defensor daquilo que se convencionou chamar a “elitização” do futebol. Há tanta desinformação no debate sobre o preço dos ingressos que a discussão central – como conciliar a necessidade dos clubes de faturar com o desejo de levar o povo aos estádios? – fica obscurecida sob muita demagogia e incoerência.
Na bem-humorada manifestação de um grupo de torcedores, neste domingo, no Maracanã, todos os defensores do ingresso a preços “populares” pareciam de classe média. Mesmo do lado de fora do estádio, o torcedor pobre, cujo interesse eles afirmavam representar, estava ausente da manifestação. Isso me fez lembrar os defensores da geral do Maracanã, quase todos gente que nunca pôs os pés naqueles lugares baratos, desconfortáveis e de péssima visibilidade. Defender os pobres é mais fácil quando quem terá que arcar com isso são os outros.
Aqueles que defendem que os clubes sejam administrados com mais competência, gerando receitas cada vez maiores para pagar suas dívidas, não podem ao mesmo tempo pedir que abram mão de receita cobrando ingressos populares – isto é, a valores abaixo do que poderiam ser cobrados.
O que define o preço do ingresso tem que ser, em última instância, a lei do mercado. É o mercado que determina se o preço de um bem é alto ou baixo. Se o Flamengo conseguir botar 60 mil pessoas no Maracanã, ou no Mané Garrincha, ou onde for, a um ingresso médio de R$ 100, melhor para o clube: ele estará maximizando suas receitas, o que lhe permitirá investir num time melhor, que por sua vez fará com que cada vez mais torcedores estejam dispostos a pagar R$ 100. Isso é um círculo virtuoso.
Ou seja: a ganância do cartola do seu clube pode ser boa para você, torcedor.
Por outro lado, se o Flamengo cobrar R$ 100 e o Maracanã ficar vazio, naturalmente o clube será forçado a rever sua política de preços, até chegar ao preço “ótimo”. E é preciso ressalvar que o acordo com o consórcio Maracanã obriga, por definição, o Flamengo a duplicar o preço do ingresso para atingir a renda desejada, uma vez que metade do preço de cada ingresso é do consórcio. Eis aí um problema que possivelmente será revisto, uma vez terminado esse acordo “experimental” de seis meses entre clube e estádio.
Isso significa que o acordo que o Flamengo fez com o consórcio é menos vantajoso para o clube do que aquele firmado pelo Fluminense? Não necessariamente. O Fluminense abriu mão da receita dos bares, por exemplo. Para saber quem levou a melhor, se Fla ou Flu, é preciso ter em mãos todos os números e esperar um maior número de jogos.
Compare-se com o Grêmio: jogando em seu novo estádio contra o Fluminense, o clube gaúcho obteve receita líquida quase idêntica à do Flamengo contra o Botafogo, cobrando ingressos mais baratos e com um número menor de pagantes. Por quê? Porque, por ser dono do próprio estádio, o Grêmio tem despesas menores a cada partida (veja o gráfico).
Repetindo a pergunta de dois parágrafos atrás, apenas trocando de time: isso significa que o Grêmio foi mais esperto que o Flamengo, e que é melhor ser dono do próprio estádio do que alugar um? Mais uma vez, a resposta é: não necessariamente. Isso porque, durante muitos anos, o acordo de construção do estádio do Grêmio prevê a repartição dos lucros com o consórcio gestor. E só no longo prazo o Grêmio saberá ao certo quanto custará manter seu estádio. Cálculos simplistas não dão conta de resolver essas perguntas. O tempo dirá.
Mas um fato é inescapável: a lei do mercado não perdoa. Quando foram jogar na Arena Pernambuco, Botafogo e Fluminense mostraram que o bolso do torcedor tem limite. Apenas 9.669 foram ao estádio. O ingresso médio custou R$ 47. O torcedor não é otário: ele pagará R$ 109 (valor médio da entrada para Santos x Flamengo, despedida de Neymar) se considerar o espetáculo vale R$ 109. Sessenta e três mil pessoas acharam que valia. Sinal de que o valor do ingresso foi corretamente calculado.
Essa é a lei da oferta e da procura. Por que todos têm direito de maximizar suas receitas, mas os clubes de futebol não?
Durante décadas, os ingressos de futebol foram subsidiados indiretamente. No caso do Rio de Janeiro, isso sempre foi mais evidente. Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco jogavam em um estádio pertencente ao Estado, que cobrava valores irrisórios pelos ingressos. O resultado foram tardes de domingo maravilhosas, mas um estádio que em pouco tempo se tornou decrépito, onde era preciso sair da arquibancada arrastando os pés com cuidado para não levantar ondas de urina pelos corredores. Sem receita adequada de bilheteria (e, claro, mal administrados), os clubes aos poucos se voltaram para a televisão. O resultado: estádios progressivamente esvaziados. Um círculo vicioso se formou.
Cobrando menos do que poderia, o futebol brasileiro transformou a bilheteria numa das fontes menos relevantes de arrecadação. Não faz muito tempo que o Atlético Mineiro cobrava R$ 1 no Mineirão. Isso ajudou de alguma forma o Atlético a montar o elenco recém consagrado campeão da Libertadores? Não creio. Por outro lado, o Galo gerou uma renda e R$ 14 milhões no Mineirão lotado, na final da Libertadores. Se tivesse cobrado R$ 1, a renda desse jogo teria sido de R$ 60 mil. Os adversários da “elitização” estariam satisfeitos.
Além disso, a ideia de que o futebol está sendo “elitizado” comporta uma dose de preconceito. Não vejo quase ninguém protestando contra a elitização do cinema ou a elitização do teatro. Por que não defender preços populares no cinema e no teatro? O futebol seria um espetáculo “para pobres”?
Outras falácias têm que ser desfeitas. Uma delas é o próprio preço do ingresso. Na verdade, muito poucos ingressos no domingo passado, no Maracanã, custaram R$ 100 ou mais. Com o grande número de meias-entradas e gratuidades (cativas e perpétuas, cadeiras sobre as quais os clubes não têm possibilidade de faturar), o verdadeiro valor médio (que é o que interessa nesta discussão) cobrado no domingo passado era R$ 79. Mesmo assim, havia 38 mil pagantes no estádio.
Um argumento contraposto com freqüência é que pelo menos uma pequena parte dos ingressos poderia ser reservada para os “preços populares”. Mas além de não resolver o problema da elitização – reservar 5%, digamos, para os pobres manteria o estádio 95% “elitizado”, o que só serviria para aliviar a consciência de alguns – quem garante que esses ingressos iriam parar mesmo na mão dos mais necessitados, ainda que supondo uma venda sem tumulto? Quantos desses ingressos não seriam encontrados na hora do jogo, na porta do Maracanã, nas mãos de cambistas, por um preço dez vezes maior?
Outra é o exemplo do Borussia Dortmund. O clube alemão, atual vice-campeão europeu, foi elevado ao status de modelo internacional. Afirma-se que leva 80 mil pessoas por jogo a seu estádio porque cobra ingressos populares. O ingresso mais barato, de fato, é de 15 euros (R$ 45) nos lugares em pé, atrás do gol (podendo baixar para R$ 30 com certos descontos oferecidos). Mas a primeira categoria sentada custa 29 euros (R$ 85) e a mais comum no estádio custa… 34,50 euros, ou… R$ 100 (esse valor cai para R$ 75 se o torcedor compra o pacote para os 17 jogos domésticos da Bundesliga). Além disso, há uma cobrança de um extra (“Topzuschlag”) de 20% em jogos considerados de primeira linha (por exemplo, contra o Bayern e o Real Madrid, na última temporada). Tudo isso está no site do clube.
É um falso argumento comparar o salário mínimo do Brasil com o alemão, para mostrar que o ingresso daqui estaria supervalorizado. O Rio de Janeiro é, com toda probabilidade, uma cidade de custo de vida mais alto que Dortmund, em valores absolutos, e não relativos. A comparação tem que ser feita pelo custo de vida real, não pelo salário mínimo, que é fixado em cada país sob critérios e condições sociais e políticas completamente distintas e atinge percentuais diferentes da população. Cumpre ainda lembrar que os clubes alemães recebem subsídios indiretos do governo, sob a forma de transporte gratuito nos dias de jogos e generosas verbas para obras no entorno dos estádios.
Não é verdade, além disso, que o ingresso do Campeonato Brasileiro esteja custando preços astronômicos. Após as oito primeiras rodadas, foram vendidos 1,038 milhão de ingressos, arrecadando-se uma receita bruta de R$ 37 milhões. Isso representa um valor médio de R$ 36 por ingresso, longe de ser um absurdo. Os ingressos mais caros, naturalmente, têm sido cobrados nas novas arenas e nos jogos de maior apelo.
A varrer também o argumento de que o ingresso deve ser barateado porque a torcida “embranqueceu”. É verdade que nas novas arenas a diversidade da população brasileira não estava representada (em alguns jogos da Copa das Confederações o público chegava a ser 95% branco). Mas a culpa é da sociedade, e não do preço do ingresso. O que deveríamos combater é a causa dessa distorção – ou seja, o racismo, a desigualdade, a falta de oportunidades de ascensão social em nosso país – pois só assim se dará solução correta ao efeito, que é a representação desproporcional da nossa diversidade. Dizer que o preço do ingresso deveria baixar para que aumente o número de negros na torcida é, no fundo, mais uma expressão involuntária da perpetuidade desse preconceito, associando o negro à pobreza. Nunca vi ninguém reclamando que o público dos teatros brasileiros, ou dos cinemas de grife dos shoppings, ou de certos shows de rock ou de jazz, “embranqueceu”. Como se nesses espetáculos a sub-representação da população negra e mestiça não causasse o mesmo incômodo que num estádio de futebol.
A falsa discussão sobre a “elitização” camufla outra, muito mais importante: como os clubes podem aumentar suas receitas de bilheteria – o que poderia levar, paradoxalmente, à redução (sim) do preço dos ingressos. Os boletins financeiros da CBF mostram o quanto é obscuro o destino da arrecadação dos estádios. Sob rubricas vagas como “despesas gerais”, escorrem entre os dedos dos clubes parcelas importantes da arrecadação dos jogos. Vendendo de forma mais competente os pacotes para temporada inteira, como o Borussia Dortmund, os clubes também podem garantir mais receita, cobrando até menos. E, claro, oferecendo um sistema de vendas mais racional, transporte adequado para chegar ao estádio e conforto dentro da arena, os clubes oferecerão um espetáculo pelo qual valerá a pena pagar cada vez mais. Em algumas dessas áreas tem havido evolução, mas é preciso muito mais.
Comentando por que, dos espetaculares R$ 14 milhões (recorde nacional absoluto) arrecadados na final da Libertadores, o Atlético Mineiro recebeu apenas R$ 7,5 milhões, o presidente do clube, Alexandre Kalil, referiu-se aos “fantasmas do futebol”. Eles levaram o restante. São esses fantasmas que deveríamos estar caçando, e não o falso fantasma da elitização.
Fonte: Urublog