As torcidas são um espetáculo de totalitarismo.

A foto é de 1936, mesmo ano em que a Alemanha nazista sediou a Olimpíada em busca da glória da raça ariana, e foi tirada num estaleiro alemão. Casado com uma judia, Landmesser foi preso pelo regime e desapareceu em 1944. Oficialmente declarado morto em 1949, será lembrado como um dos alemães que não compactuaram com o crime que tantos aprovavam em sua época.

Sou ambivalente em relação a essa foto. Quando me lembro do que o gesto significa, admiro demais a coragem do solitário Landmesser, guardando a mão entre braços cruzados. Quando abstraio a intenção do gesto, vejo algo parecido a uma arquibancada – e até identifico certa força e beleza.

Um dos perigos de amar o futebol é a vocação totalitária das torcidas. O gesto único e os coros uníssonos muitas vezes transformam o indivíduo-torcedor num ser voluntariamente entregue ao pensamento da massa, que, a rigor, não pensa. Subtraído de sua consciência, o torcedor trai a si mesmo como ser humano e é capaz de idiotices e monstruosidades na defesa de uma ideia: a supremacia do clube do coração.

O ajuntamento de massas organicamente alinhadas com uma ideia imprime em quem não se inclui nisto a sensação de respeito e temor diante de um colosso, um gigante imbatível de som e fúria. Todo o nosso conceito atual de torcidas impressionantes passa por essa sincronia das massas, o que não é muito diferente de um desfile nazista ou fascista. Gostamos do gesto multiplicado, porque ele nos assombra.


As torcidas são um espetáculo de totalitarismo: pensamento único, sincronia, uníssonos furiosos, a força do que é numérico e maior. Eu me lembro de quando as torcidas do Corinthians na Libertadores de 2012 decidiram um cronograma de cânticos uníssonos, que tinham hora para mudar durante os jogos decisivos.

Absolutamente poderosos, embora inegavelmente totalitários, os corintianos foram campeões. Só que esse gosto norte-coreano fica amargo na boca de quem pensa por alguns minutos.

O problema desse totalitarismo é que ele não apenas nos atrai como nos intimida, estejamos nós dentro ou fora de seu “corpo” – é assim que ele consegue a falsa impressão de ser uma ideia igualmente distribuída entre os indivíduos que formam a massa. Pode-se querer discordar dela, mas talvez não seja possível enfrentar essa vontade de uns poucos que já contaminou muitos, o que os torna praticamente “todos”.

No Vasco 1×1 Corinthians de ontem, muito antes de a porradaria estancar, já se ouvia pela transmissão da TV gritos de “pula, viadinho” – que miravam certamente os torcedores que não pulavam junto e “desunificavam”o ambiente. Nas férias de 2001 vi em Gênova uma partida da Série B entre Sampdoria e Citadella, e os sampdorianos gritavam de forma mais infantil: “Quem não pula é um torcedor do Genoa”, seu arqui-rival genovês.

É menos ofensivo, mas a ideia é a mesma: se você não faz como nós, está contra nós. E todo mundo deveria ter o direito de permanecer sentado na cadeira comprada.

Aconteceram eventos muito piores na arquibancada do Mané Garrincha. Batalhas entre pessoas que se deixaram adestrar como soldados, para uma guerra da qual ninguém precisa, a não ser quando se aprende que essa guerra constitui um fim em si mesma. Combater torcedores de outro clube só faz sentido na cabeça de quem combate, porque lhe dá algum tipo de status entre os que o consideram um combatente.

Fora desse subgrupo entre a milícia e a seita, você é apenas um imbecil criminoso. Dentro deles, porém, você tem algum valor, sente-se entre iguais, pertencendo a alguma coisa. Muitos preferem essa pequena valorização e por isso aderem às organizadas criminosas.

Neste ano, voltando do Engenhão de trem, vi membros de uma organizada do Vasco tentando intimidar botafoguenses, que haviam conquistado a Taça Guanabara. Os valentões eram seguidos por meninas, que usavam também a camisa da organizada. Elas orbitavam aquele ambiente de violência, fascinadas pelos agressores. Cada um ali parecia tentar provar seu valor individual aos outros e a elas, que, se não participavam das agressões, tampouco as tentavam impedir: nitidamente as meninas admiravam o “trabalho” de seus homens.

Em casa, devem ser até bons garotos e garotas, daqueles que acham que a violência não tem espaço no dia a dia, mas que não se furtam ao vácuo de caráter que o futebol tão culturalmente permite. Aceitamos ser mal-educados, vingativos, furiosos e desonestos, dentro e fora de campo, pelo futebol. E isso nos reflete como um todo: uma nação em que é hábito esperar a oportunidade de burlar a lei, porque qualquer um faria isso em seu lugar, porque tantos fazem e porque é raro acontecer punições.

Foi nesse trem que me dei conta de que é impossível extinguir as organizadas por vias jurídicas, ou por meros decretos. Os clubes as alimentam; no fim, manobram e são manobrados politicamente por essas milícias. Sabe-se que jogadores, técnicos e dirigentes também negociam enquanto pessoas físicas com esses grupos, a fim de evitar vaias e se sabotarem uns aos outros. Estamos falando de um poder real, que vai desde a entrada grátis no estádio a uma efetiva influência no que acontece no campo. E ainda há uma ascensão social, em relação a um grupo a que se quer pertencer e no qual se busca ser importante ao olhar dos demais.

E de novo estamos falando da relação intrínseca que o futebol tem com formas de totalitarismo.

Pense na permissão que o Corinthians deu a membros da Gaviões para inquirir Emerson Sheik, o Filatelista, sobre o inocente selinho que deu de brincadeira num amigo. Pense no comunicado da própria torcida, que não se assume homofóbica, mas ofendida, como se fosse uma senhora de Santana lutando pelos bons costumes – o que arrancou de Sheik um pedido de desculpas por uma culpa que nem sequer identifico. Pense ainda na campanha da Nike que fala em “República Popular do Corinthians”, um lema demagógico com raízes totalitárias.

Falo do Corinthians porque neste momento cabe falar de Corinthians – os casos totalitários estão mais evidentes agora. Poderia ser com qualquer clube que se associe a qualquer organizada fascista.

Junte a isso o habitual fascínio pela violência, que atrai homens e mulheres: os números de público de um UFC mostram o fascínio unissex da luta corporal – e aí voltamos ao meu trem pós-Engenhão. Talvez cheguemos ainda à conclusão de que, antes da popularização do MMA, havia uma enorme demanda reprimida por sangue: gente que queria consumir violência como entretenimento, em algum espaço onde ela seja permitida. Antes, a torcida organizada e seu comportamento de manada atendia a isso.

(Talvez o MMA nos melhore como sociedade, se ajudar a canalizar para o esporte aquilo que acontece há anos nas margens da legalidade. Isso me faz a favor do UFC)

E não serei contra o futebol. Não há como negar que um torneio como o Campeonato Brasileiro põe em campo 20 ideias em debate, cada uma em busca da supremacia sobre as demais. O importante é relativizar essa disputa. Não acabaremos com as organizadas na base de decretos, até porque já tentamos isso e descobrimos que a bandidagem fareja muito bem as brechas para continuar exercendo poderes que interessam a outros poderes. Mas precisamos debater esse vácuo de caráter que permite que uma brincadeira seja uma ameaça mortal e discutir até que ponto é legal ser parte da massa e quando é preciso urgentemente ser indivíduo.

Alguns bons exemplos talvez ajudem. Dirigentes que neguem ingressos e espaço, torcedores que vaiem brigas e que não cantem junto com organizadas, que inventem outras formas de torcer –  gente que, como Landmesser, não se alinhe à manada criminosa.

Também ajudaria haver jogadores que se recusem a falar com totalitaristas naqueles momentos em que seus clubes permitem essas coações, e que mantenham algum tipo de militância que desaprove esses comportamentos.

E claro, sistemas judiciários mais rápidos e enérgicos na repressão a esses idiotas e que os punam como indivíduos: gente que tem que ter nome e sobrenome fichados, sentenciados e banidos dos estádios e da vida em sociedade. Mas, enquanto esse rigor não chega, será como indivíduos que teremos que reagir à tentação totalitária do esporte que amamos.

O resto tem a ver com berço e caráter, coisas que não estão à disposição de todo mundo.

Em tempo: Parabéns a Dellatorre, do Atlético-PR, que protegeu a bola que ia entrando para o gol do companheiro Ederson, em vez de roubá-la para si. É um pequeno gesto, mas de infinito simbolismo. Ederson agora é artilheiro do Brasileiro, ao lado de William, da Ponte Preta. Graças à generosidade do companheiro. Traços como esse ajudam a entender o que torna o Atlético-PR uma das equipes mais fortes do Brasileiro-2013.

Fonte: Blog do Márvio dos Angos


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