A melhor definição que ouvi sobre o atual time do Flamengo foi dada por um jogador do Emelec, antes do jogo da semana passada: “O Flamengo é um time comum, vamos partir para o ataque”. Como o time dos equatorianos é, com o perdão do ilogismo, mais comum ainda, o Flamengo venceu. Mas o jogo foi tecnicamente muito ruim. Ciente de que assim seria, e também de que eu não conseguiria deixar de vê-lo, caso não tivesse nada melhor para fazer (não tinha), combinei de assistir à peleja junto a meu amigo Pedro Duarte. Pedro é filósofo, então ficamos trocando altas ideias enquanto olhávamos distraidamente para a baixa pelada, e só por isso valeu a pena me mobilizar pela partida. Como muitos, senão todos os que amam futebol têm comentado, o futebol no Brasil tem sido um suplício de assistir, sobretudo se comparado ao que está acontecendo, neste mesmo momento, em gramados europeus.
Supliciar-se é uma dimensão constitutiva da vida de um torcedor, de modo que lá estava eu, no domingo, em frente à TV, logo que começou Flamengo x Vasco. Como meu filho estava dormindo no berço, tirei o som. Sem os esforços do narrador para dar importância ao jogo, e sem o barulho das torcidas, a precariedade do futebol se expunha de forma especialmente crua. Os jogadores, de ambos os times, erravam tantos passes que, passados alguns minutos de jogo, pus-me a contá-los: nenhum dos times conseguia trocar quatro (!) passes seguidos da intermediária de seu próprio campo para a frente. Para piorar, o jogo era interrompido a todo momento por faltas (foram 61 ao todo, número exorbitante). Mas o show de horrores não se resumia aos aspectos técnico e tático; os jogadores não cessavam de discutir entre si e com o juiz, dando ao espetáculo já feio uma outra dimensão de feiura, dessa vez moral e imaginária.
Nessas horas, fico sempre pensando nos juízes e naqueles que os criticam. Nada é mais difícil do que ser árbitro de futebol no Brasil. Na Europa os juízes conduzem os jogos com tranquilidade. Aqui, muitas vezes perdem seu controle. Tendemos a pensar imediatamente que isso se deve à falta de qualidade técnica de nossos homens de preto, mas o problema maior é que eles representam uma instituição, a lei, socialmente sem credibilidade no Brasil. Um árbitro europeu raramente é contestado de forma ostensiva e agressiva, pois a lei, que ele ali encarna, é culturalmente respeitada e mesmo reverenciada. No Brasil, em vez de instrumento igualitário, a lei é percebida essencialmente como instrumento a ser pressionado para obter vantagens, justamente porque se parte do princípio de que, se não se o fizer, o adversário o fará (alguns objetarão aqui que até o time do Barcelona pressiona o juiz; sim, mas isso é parte pequena do jogo considerado como um todo, exceto em partidas especialmente tensas, como as contra o Real Madri na época de Mourinho x Guardiola).
Atualmente, conheço melhor os times do Barcelona, Real, Chelsea, Bayern e PSG do que os times brasileiros — com exceção do Flamengo, claro, por um imperativo masoquista de torcedor. Os grandes jogos europeus se oferecem ao amante do futebol como um espetáculo de inteligibilidade tática e poesia técnica, tornados possíveis pelos seus irretocáveis gramados de sinuca (esses gramados estão para o tiki taka do Barcelona assim como o surgimento do microfone está para o canto de João Gilberto). Diferentemente do que se passava, me parece, há alguns anos, o futebol europeu não apenas reúne os melhores jogadores do mundo (inclusive, ainda, brasileiros), mas produz ele mesmo grandes jogadores. A safra mundial é excelente. Já no Brasil, não me parece que estamos a revelar craques com a mesma prodigalidade de outros tempos.
E entretanto lá estarei eu, postado diante da TV hoje à noite, quando o Flamengo decidirá sua sorte na Libertadores. Meu amigo Arthur Muhlenberg (que é o dono da mais inspirada verve entre todos os que escrevem atualmente sobre futebol) comentou recentemente que não é por causa da altitude e de outros fantasmas que o Fla tem ido mal na competição sul-americana. É porque o time é limitado mesmo. E entretanto, torcedor que é, termina seu comentário evocando os poderes do manto rubronegro. Eu, que não tenho a sua verve, mas tenho ceticismo para dar e vender, acrescentaria que há uma diferença entre camisa e torcida. Torcida é o efeito intimidador que milhares de pessoas juntas exercem sobre o adversário. Camisa é o efeito intimidador que um clube, pela sua história de vitórias, pela sua grandeza, exerce sobre o adversário. Camisa e torcida jogam, sim. Infelizmente o Flamengo, que não a vence lá se vão 33 anos, não tem camisa na Libertadores. Mas tem torcida.
Fonte: O Globo