O SóFLA dá sequência a sua série de pautas técnicas sobre o nosso clube. Hoje, discutimos aspectos jurídicos de interesse de todo associado, e combatemos uma mistificação frequentemente repetida pelos corredores da Gávea: “o sócio-proprietários é responsável pela dívida do Flamengo?”; “se o clube fechar, a dívida é dividida entre os proprietários? E cada um é obrigado a pagar a sua ‘cota’?”. Essa é, na verdade, apenas uma lenda urbana, sem qualquer fundamento jurídico.
Esse tema, infelizmente, costuma ser usado como mote em discursos políticos terroristas. Você já deve ter ouvido, em algum “tiroteio retórico”, acusações como “querem privatizar o Flamengo!”, ou “vão deixar a dívida para o sócio-proprietário”. Trata-se apenas do uso de uma estratégia política antiquíssima: a desinformação serve para assustar. Não se deixe impressionar.
O Flamengo é uma associação civil – e, portanto, não possui proprietários de fato. O Código Civil é explícito: o associado não possui qualquer direito sobre o patrimônio da associação – ou, analogamente, nenhuma obrigação sobre patrimônio eventualmente negativo.
“Art. 61. Dissolvida a associação, o remanescente do seu patrimônio líquido, depois de deduzidas, se for o caso, as quotas ou frações ideais referidas no parágrafo único do art. 56, será destinado à entidade de fins não econômicos designada no estatuto, ou, omisso este, por deliberação dos associados, à instituição municipal, estadual ou federal, de fins idênticos ou semelhantes.
§ 1o Por cláusula do estatuto ou, no seu silêncio, por deliberação dos associados, podem estes, antes da destinação do remanescente referida neste artigo, receber em restituição, atualizado o respectivo valor, as contribuições que tiverem prestado ao patrimônio da associação.”
Se o clube tiver patrimônio de cem bilhões de reais e fechar as portas, os associados não terão direito a um centavo sequer – não importa a categoria. Se fechar as portas com dívida de 750 milhões, o associado, tampouco, tem qualquer obrigação em relação a esses débitos. Não existe letra da lei ou decisão que diga o contrário. Se ainda não tiver ficado clara essa questão, outro trecho do Estatuto – curiosamente, o Artigo 1º – reforça esse entendimento de maneira mais explícita:
“Art. 1º O CLUBE DE REGATAS DO FLAMENGO, neste Estatuto denominado FLAMENGO, fundado em 15 de novembro de 1895, na Cidade do Rio de Janeiro, Estado do Rio de Janeiro, Brasil, onde tem sede e foro, situado na Avenida Borges de Medeiros, nº 997, Lagoa, CEP 22430-041, é uma associação civil, sem fins lucrativos, de utilidade pública (Lei n.º 1516, de 8 de novembro de 1967), caracterizado como entidade de prática desportiva, constituído por prazo indeterminado, com personalidade jurídica distinta da de seus associados, os quais não respondem, solidária ou subsidiariamente, pelas obrigações contraídas pelo FLAMENGO, regendo-se por seu Estatuto Social e pela legislação vigente.”
Resta ainda alguma confusão a respeito da “fração ideal” mencionada no Estatuto do Clube e no artigo 56 do Código Civil. O associado tem direito exatamente a que em caso de dissolução do clube? Simples: ao valor do título (a ‘fração ideal’) e, se assim deliberado ou definido em estatuto, às contribuições feitas ao longo do tempo. Digamos que os proprietários tenham adquirido o título por $10.000, e que tenham feito contribuições mensais de R$100 ao longo de um ano; já os contribuintes não adquiriram título e fizeram contribuição mensal de R$200 ao longo de um ano. Na dissolução, e se o patrimônio líquido do clube permitir, os proprietários terão direito ao valor de R$10.000; e, se assim deliberado, terão também direito de recuperar suas contribuições: 12×100 = R$1.200 (totalizando R$11.200), enquanto os contribuintes terão o direito de recuperar 12×200 = R$2.400.
Para reforçar: não há, rigorosamente, nenhuma disposição legal que torne o Proprietário responsável pela dívida em caso de patrimônio líquido negativo. No pior cenário, o valor do título (ou cota, ou fração ideal) não pode ser recuperado (pois não há patrimônio) e o valor de mercado vai a zero, já que se refere ao título de um clube dissolvido. O Proprietário não é responsável, em nenhuma circunstância, pela dívida do clube.
Vale a pena desenvolver um pouco mais o tema e tentar responder à seguinte questão: o Flamengo, um clube esportivo definido legalmente como associação civil, possui proprietários? Para tanto, o mais útil é “começar pelo começo”, e buscar definir o que é ‘proprietário‘ – seja no dicionário, seja em governança corporativa, seja no próprio Código Civil.
Propriedade é, de acordo com o Código Civil, o “direito de usar, gozar e dispor de bens, e de reavê-los de quem quer que injustamente os possua”. De acordo com o Aurélio, é “bens sobre os quais se exerce esse direito”, ou ainda “prédio, fazenda, herdade”. Fica claro que, como associação civil, o Flamengo não se encaixa em nenhuma dessas definições: não é um bem; não é ‘prédio ou fazenda’; e, como exposto anteriormente, a ninguém é dado o direito de “dispor” do Clube. Muito pelo contrário: à diferença de um imóvel ou mesmo de uma empresa, o patrimônio do clube é ‘disposto’, em última instância, apenas conforme o Código Civil determina.
Conclusão similar pode ser alcançada pelo prisma da Economia, ou da literatura de governança corporativa. Nesse caso, ‘propriedade’ é definida como ‘direito residual sobre um bem’; proprietário é aquele que, salvo disposição contratual em contrário, decide como dispor do bem. Conclui-se novamente que o Flamengo não possui proprietário, pois o ‘direito residual’ não cabe aos associados – mas ao Código Civil.
Em qualquer definição, o proprietário necessariamente possui direitos sobre o patrimônio do clube – e é essa a característica essencial que falta ao sócio-proprietário do Flamengo. A conclusão é inequívoca: o Flamengo não tem, portanto, proprietário. O Flamengo não tem dono – à parte a sua torcida. O termo mais preciso, como implicitamente sugerido pelo próprio Código Civil, seria associado-cotista, em vez de sócio-proprietário.
É comum fazer o paralelo do sócio-contribuinte com o locatário de um imóvel, enquanto o sócio-proprietário corresponderia, naturalmente, ao proprietário. Todavia, essa analogia não é precisa exatamente porque uma associação civil, ao contrário de apartamentos, casas e veículos, não admite proprietário.
A diferença entre Contribuinte e Proprietário se assemelha à distinção entre classes num voo: Executiva ou Turista. A classe executiva paga mais, e tem vantagens adicionais em relação à turística. Mas, sob nenhuma hipótese, algum passageiro passa a ser dono do avião porque adquiriu bilhete da classe executiva.
Cabe, então, perguntar: que direitos adicionais o proprietário deve ter? Está claro que não há qualquer direito “típico” ou “essencial” da categoria Proprietário: especificamente, não há nenhum direito à posse, nenhum direito (ou obrigação) sobre o patrimônio do clube. Cabe ao ‘legislador’ definir esses direitos – ou seja, trata-se de tema para o Estatuto do clube. Vale lembrar que o Código Civil permite tal diferenciação em seu artigo 55: “Os associados devem ter iguais direitos, mas o estatuto poderá instituir categorias com vantagens especiais”.
O SóFLA defende que o sócio-proprietário tenha vantagens na representação política dentro do clube; em particular, deve ter competência privativa para ocupar os principais cargos do clube. Além disso, deve ter acesso privilegiado a documentos e informações relevantes para a saúde institucional do Flamengo. Em resumo: o Contribuinte deve ter o direito irrestrito a voto, enquanto o Proprietário é responsável por compor as instâncias decisórias do clube, e por contratar o corpo executivo necessário para a gestão cotidiana do Flamengo.
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Fonte: Sócios Pelo Flamengo