Representação da miragem no deserto, o oásis dá lugar ao dinheiro no imaginário da Arábia Saudita. E no país do Oriente Médio, os petrodólares que seduzem os jogadores costumam formar a ilusão de clubes e investidores nas negociações. Só no Brasil são vários os exemplos de decepções na hora do pagamento: calote, atrasos de parcelas e salários e até cheque sem fundo. O caso mais recente é o de Hernane, vendido pelo Flamengo ao Al Nassr por R$ 14 milhões. Nesta quarta-feira se completa um mês do primeiro dos vários prazos dados e não cumpridos pelos árabes. Até agora, o Rubro-Negro e a Traffic – empresa que encaminhou a proposta e intermediou as tratativas – não viram a cor da grana pelo Brocador.
Assim como o Vasco, que está há mais tempo na fila. Junto com a Traffic – também parceira nesta negociação – até hoje não receberam os R$ 15,5 milhões pela venda de Diego Souza ao Al Ittihad, em julho de 2012. Mas o Cruz-Maltino tomou medidas drásticas. Enquanto o Flamengo se mostra paciente e otimista em resolver as pendências sem ir à Fifa, o clube de São Januário acionou a entidade que comanda o futebol mundial há um ano e aguarda pelo desfecho do julgamento: o processo encontra-se em reta final, e o valor corrigido com a multa já passaria da casa dos R$ 20 milhões – neste meio tempo, o jogador deixou o elenco árabe e, desde então, passou por Cruzeiro e Metalist da Ucrânia até chegar ao Sport. Para os investidores, o atraso nem sempre é tão ruim, pois é visto como uma forma de aplicação. Mas para os clubes, que têm mais exigências e muitas vezes traçam planos com tais verbas, a demora não é nada satisfatória.
– Este é um mercado que, para nós, está fechado, a não ser que seja à vista. Não existe mais confiança para trabalhar com clubes árabes – disse Vilson Ribeiro, presidente do Coritiba, que recebeu só a primeira parte dos R$ 5 milhões a que tem direito da venda de Rafinha para o Al Shabab, no ano passado, e também foi à Fifa. A segunda e última parcela venceu em julho de 2014.
Vilson acredita que só recebeu a primeira parte da verba por ter condicionado o pagamento à liberação do jogador. Mesma coisa fez Marcos Malucelli, ex-presidente do Atlético-PR, em 2010. Para emprestar Marcinho ao Al Ahli, a US$ 800 mil por um ano e meio de contrato, o dirigente viajou até a cidade de Jeddah para se sentir mais seguro. Lá, os árabes que são donos dos clubes falam inglês e se mostram bem receptivos.
– Eu fui para lá acompanhar. Só autorizaria a negociação se tivesse a remessa da primeira parcela. Eles mostraram, então eu liguei para confirmar e assinei a liberação de lá. Se não me engano, foram mais duas parcelas, que atrasaram alguns dias – lembrou Malucelli.
No caso Hernane, o Flamengo tentou algo parecido: segurou o TMS, documento que libera o atleta para ser regularizado em outro país, mas foi obrigado pela Fifa a ceder os papéis. A posição da entidade se dá uma vez que, por lei, o TMS não pode ser condicionado ao pagamento da compra, evitando assim que o jogador fique sem exercer sua profissão.
Um dos males apontados no mundo árabe, como casos do futebol chinês, é a não apresentação de garantias bancárias para as contratações – muitas vezes os clubes acabam abrindo mão do comprovante por ter pressa na venda, seja pela proximidade do fim do contrato e do fim da janela, ou ainda pela saúde financeira. Mas a história mostra que até mesmo este artifício já foi driblado pelos árabes. Em 1978, a venda de Rivellino do Fluminense para o Al Hilal, por US$ 1 milhão, teve até cheques não compensados no Brasil.
– Normalmente, no futebol se usa de garantias de pagamento. Só não poderia imaginar que seriam cheques sem fundo. Recorremos à Fifa, e o presidente era o (João) Havelange, que era meu amigo. Foi rápido, a Fifa os intimou para que depositassem, caso contrário perderiam o jogador. Depois eles fizeram. Foi a primeira vez que deu problema numa negociação internacional, e como nós resolvemos, abrimos caminho para outros – contou Silvio Kelly, ex-presidente e vice de futebol do Fluminense, responsável por viajar junto com Rivellino para fechar negócio.
À época, a “Revista Placar” apresentou detalhes da negociação num formato reportagem-novela intitulado “O conto árabe”, dividido em três capítulos e edições. Nas páginas, revelações como o calote dado pelo príncipe Khaled no hotel onde ficou hospedado no Rio de Janeiro e a exigência dos árabes por retratação do Fluminense após acusação de não honrar compromissos. No país, existem clubes que pertencem à família real saudita, como também é o caso do Al Nassr.
Especialistas procuram soluções
Os problemas envolvendo dinheiro vão além das vendas e afetam até mesmo o salários dos jogadores. Diego Souza é um dos que brigaram judicialmente com o clube e conseguiram a liberação na Fifa após ficar cerca de apenas três meses no Al Ittihad. Mesmo time no qual recentemente Jobson enfrentou problemas, ficando sem dinheiro e impossibilitado de sair do país. O mundo árabe virou sinônimo de preocupação, e na semana passada advogados de vários países, especialistas em legislação internacional, reuniram-se num seminário na corte arbitral do esporte para buscar soluções.
– Isso é unânime na comunidade jurídica internacional desportiva: o mercado árabe é problemático. Tivemos vários casos: Obina, Renato Cajá, Diego Souza, Lima… No próprio Al Nassr tivemos problemas, por causa do Marcelinho Carioca em 2003, 2004. A minha opinião é que geralmente a federação saudita age em função dos clubes. Ela é muito submissa, então temos dificuldades – salientou Marcos Motta, advogado que representa o Flamengo na Fifa no caso Hernane. Ele garante não existir chance de o atacante retornar ao Rubro-Negro.
Motta explica que os processos na entidade máxima do futebol levam em torno de um ano e, nesses casos de atraso de pagamento, o procedimento é entrar com uma ação da Fifa contra o clube, com cobrança de multa. Em certas situações, também podem ser solicitadas punições disciplinares, como, por exemplo, o impedimento de registrar novos jogadores por um determinado período. Mas o advogado reitera que, para os clubes, o melhor caminho é se precaver ao máximo nas negociações.
– A nossa sugestão é que, quando for fazer algum negócio com time saudita, que tenha cuidado redobrado, porque é um lugar que tem enfrentado problemas. Todo negócio tem um risco, e é preciso minimizá-lo ao máximo, colocando mecanismos de contrato que forcem o pagamento. Multas altíssimas em caso de não pagamento, vencimentos antecipados de parcelas caso alguma não seja paga. Você inibe um pouco o mau pagador, que começa a fazer conta: se não pagar, tem multa de 50%; se não pagar essa parcela, a próxima será antecipada com multa de 50%. É ter algumas previsões contratuais que inibam o mau pagador – sugeriu.
Fonte: GE