Juca Kfouri: “Uma vez Flamengo”

POR LUIZ GUILHERME PIVA

1.
“Flamengo, Flamengo, tua glória é lutar!

Flamengo, Flamengo, campeão de terra e mar!”

Nos bailes de Carnaval as bandas sempre tocavam o refrão do Hino Oficial do Flamengo pra demarcar a mudança de um bloco de músicas pra outro.

Flamenguistas vibravam. Quem não torcia pro time cantava do mesmo jeito.

Mas tinha quem não gostava. Fechava a boca, parava de pular e aguardava a nova sequência.

Um deles, mais radical, é um amigo meu.

Botafoguense até a medula, de andar com a camisa, ter escudo no carro, pegar excursão pro Rio pra ver jogos sem importância no meio da semana, discutir no bar, cumprir superstições e gozar e ser gozado até o limite com os resultados do time.

Não bastasse, o time que ele mais detestava era o Flamengo. Ainda mais a partir dos anos setenta, início do auge do rubro-negro e da seca do Fogão.

Pois bem.

No Carnaval, ele ia sempre com o uniforme completo do Botafogo, incluindo as chuteiras – todas as noites, todos os anos.

Pulava e dançava com imensa alegria.

Mas emburrava na hora do refrão. Chegava a sair da pista, ir ao banheiro, ao balcão do bar, até pra rua ele ia. Mas voltava, pulava, cantava – e a banda, daí a pouco, atacava de novo o refrão fatídico.

Chegou a reclamar com a diretoria do clube. Ameaçou se desassociar. Teve uma vez que chamou o maestro pra negociar antes do Carnaval. Sem sucesso, claro.

Até o ano em que, na primeira noite, assim que a banda iniciou o estribilho e ele trincou o rosto, a morena piscou pra ele.

Maravilhosa, de short branco, com a camisa do Flamengo sem mangas, decotada e cortada no umbigo.

Ele parou e olhou pros lados.

Era com ele.

Ela estendeu-lhe os braços e o convocou dobrando os dedos das mãos.

Mal acabou o refrão e estavam abraçados.

A orquestra, que terminara a sessão de marchinhas animadas, fez dois segundos de pausa depois do refrão e mandou “bandeira branca, amor, não posso mais…”.

Beijaram-se.

Listras brancas, pretas, brancas, vermelhas, pretas e brancas enrodilhadas como serpentinas.

E cantaram juntos “pela saudade que me invade eu peço paz”.

Até o final desse bloco de músicas mais lentas não se desgrudaram.

As cores misturadas, molhadas, trançadas num só tecido.

Então veio de novo o refrão com os sopros explodindo: “Flamengo, Flamengo…”.

Ela emendou, olhando nos olhos dele: “tua glória é lutar!”.

Ele pôs os braços pra cima, abriu o sorriso, os sopros repetiram: “Flamengo, Flamengo…”.

Ele completou, soltando os pulmões: “campeão de terra e mar!”.

2.
E assim os dois a noite inteira, e no domingo, na segunda e na terça-feira gorda.

Depois?

Ela era de fora, sumiu, ninguém conhecia.

Nunca mais os brancos, os pretos, vermelhos.

Nunca mais cores.

Só cinzas.

Nunca mais seus olhos, seus braços.

Seus beijos. Sua carne.

Só quaresma.

Ele deixou de ir aos bailes.

E não quis mais saber de futebol: não vê, não ouve, não discute.

Sozinho, passa a vida quase sem conversar.

Outro dia ele me disse – para meu espanto e sob minha promessa de não falar pra ninguém – que na casa dele tem uma camisa do Flamengo emoldurada na parede.

Como um retrato.

Mas que, como a saudade, que é “mal de amor”, o retrato também é “dor que dói demais”.

Só que isso eu não posso contar.

É segredo.

Fonte: Blog Juca Kfouri

Coluna do Flamengo

Ver comentários

  • Se o ocorrido não tem muitos anos, é possível que algum registro tenha ficado no clube. Será que ela só pulou carnaval naquele ano? Não voltou mais?
    Também é possível encontrar alguma informação através do facebook, ou coisa parecida.
    Ela foi para o baile sozinha? Não tinha conhecido do conhecido, do conhecido...?
    Se não ficou com o nome, telefone ou endereço, deu bobeira?
    Faça um pedido a São Judas Tadeu que ela vai aparecer!

    • Amigo, é muito provável que isso seja uma estória inventada pra ter o que escrever nesse período de entressafra de futebol.
      Orquestra de carnaval, que normalmente é apenas chamada apenas de banda, que tem até maestro? Só se for há muito, mas muito tempo atrás.

      • Sim, muito provável.
        Como mencionei acima, eu só queria escrever um pouco. Gosto disso. SRN!!!

    • Amigo, é só uma crônica de Carnaval inspirada no Mengão...SRN

  • Galera, isso me parece ser só uma crônica! E até muito legal por sinal.

  • Crônica bacana, com a cara do Rio. Só quem já pulou Carnaval lá sabe do que estou falando. Mengão já inspirou muitas dessas e continuará inspirando...SRN

  • Muito leg...
    Peraí..antes de escrever vou ali no banheiro tirar um cisco do zói ..

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