Antes de iniciar a leitura de 1987 – A História Definitiva, de Pablo Cardoso, convém ao leitor ser informado de que a obra apenas parece ser um livro sobre futebol. Não se iluda, apesar do título, do jeitão da capa e das origens rubro-negras do autor, não se deve esperar encontrar em suas 307 páginas apenas o relato apaixonado de uma épica vitória do Flamengo. Ao contrário, 1987 é uma profunda, alentada, quiçá obsessiva, investigação sobre uma derrota. Uma derrota tão determinante para os destinos do futebol brasileiro quanto o Maracanazo em 50 ou a tragédia do Sarriá em 82. Uma derrota cujos efeitos, reflexos e desdobramentos são sentidos até hoje. Portanto atenção, ò leitor, 1987 – A História Definitiva não é um livro de futebol. É um livro de História do Brasil, assim mesmo, em maiúsculas.
Mesmo não se considerando um historiador, em seu primeiro livro Pablo Cardoso seguiu à risca a receita de Públio Cornélio Tácito, escreveu a história sine ira et studio, isto é, sem cólera nem parcialidade. Ancorado em abrangente pesquisa e temperado por valiosos depoimentos de alguns dos protagonistas da grande polêmica jurídico-esportiva da ultima metade do século XX, o volume publicado pela Maquinária Editora não apenas contextualiza o imbróglio dentro do panorama sociopolítico da época, mas também lança luz sobre os arcanos aspectos jurídicos da contenda que colocou em campos opostos os grandes clubes brasileiros e o consórcio formado pela CBF e as federações estaduais.
Sem humilhar a ninguém com seu conhecimento jurídico, e sem jamais escamotear sua preferência clubística, o autor demonstra didaticamente, resistindo à tentação fácil de fazer previsões pretéritas, o quão absurdo e teratológico (para usar a terminologia forense) foi o processo legal que resultou nas sentenças prolatadas pelo Tribunal Regional Federal de Pernambuco. Tais sentenças, cujos vícios e imperfeições o livro aponta sem deixar margem à contestação, adubaram a lenda do Sport Campeão Brasileiro de 1987 e contribuíram para a vulgarização da expressão transitado em julgado, que a torcida pernambucana se acostumou a lançar mão como se fosse um four de ases para brecar qualquer contestação à legitimidade do seu muito discutível laurel.
Aliás, no tocante ao aspecto puramente legal da polêmica, 1987 – A História Definitiva é um vigoroso puxão de orelha nos responsáveis pelo Departamento Jurídico do Flamengo de então, que fizeram como a cigarra da lenda durante o verão. Não pugnaram com a tenacidade devida pelo direito que ao fim e ao cabo seria subtraído ao Flamengo pela formiga laboriosa que mourejou com a obstinação dos réus inconfessos em cartórios, tribunais e antessalas ministeriais.
Contudo, a leitura de 1987 – A História Definitiva deixa muito claro que o Flamengo não lutava apenas contra o cartorialismo botocudo representado por Sport, pelo folclórico e perigoso Caixa-D’água ou pela já então malévola CBF. As forças que se opunham ao Flamengo, e na verdade se opunham à ideia de que os clubes fossem autogeridos, eram as mesmas forças que se opunham às eleições diretas no Brasil, à desregulamentação dos mercados nos Estados Unidos e à queda do Muro de Berlim.
Para convalidar o que Zé Carlos, Jorginho, Leandro, Edinho, Leonardo, Andrade, Aílton, Zico, Renato Gaúcho, Bebeto, Zinho e Carlinhos conquistaram nos gramados o Flamengo envolveu-se em uma luta que compartilha raízes com a sacra porradaria pelas liberdades civis e pela proteção ao indivíduo do condão discricionário dos poderes do Estado e o estabelecimento dos limites da interferência estatal na vida privada dos cidadãos. Em suma, a mãe de todas as lutas contra o abuso de poder. 1987 – A História Definitiva nos dá acesso ao pleno conhecimento de como o Flamengo se inseriu nesse grande quadro, o que é mais um motivo de orgulho para quem fecha com o certo. O Sport lutava por um título ao qual jamais fez jus, o Flamengo por sua vez, lutava por uma Magna Carta.
Não bastassem as evidentes qualidades historiográficas de 1987 – A História Definitiva, Pablo Cardoso soube destrinchar um enredo de grande complexidade com objetividade em um texto escorreito, leve e saboroso. Em que o autor deixa claro quem era quem na fila do pão em 87. Em uma surpresa para os mais xiitas, os demais times participantes do controverso campeonato brasileiro, incluso o Sport, são tratados com a devida equidistância e respeito. E algumas vezes até com algum carinho, em contraste à indisfarçável natureza que transparece nos retratos dos nossos dirigentes esportivos. Retratos que, mauvaise chance la nôtre, mudaram muito pouco nos últimos trinta anos.
Leia o livro.
Mengão Sempre
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