Ao redor da Copa das Confederações o Brasil foi palco de uma catarse coletiva, uma revolta contra tudo e contra todos, que levou milhões de pessoas às ruas despejando uma ira coletiva contra uma série de mazelas que há décadas nos afligem. Como um fio condutor de tudo aquilo, uma luta em particular chamava atenção: o povo estava particularmente revoltado com os gastos excessivos para a realização da Copa do Mundo, sem que se percebesse uma contrapartida para a população.
Sem querer entrar no mérito do acerto daquela percepção, não há como não citar que a privatização do Maracanã impõe uma lógica perversa: enquanto o “legado” da Copa servirá ao menos para melhorar a relação dos clubes com os novos estádios e assim permitir aos mesmos mais ganhos financeiros, o modelo de privatização do Maracanã foi feito para punir os clubes cariocas.
A esdrúxula privatização empreendida pelo governo estadual está calcada em dois pilares básicos:
a) entregar a gestão de um espaço público reconstruído a um custo bilionário – e com a receita dos impostos pagos pela população carioca – a um operador privado (um consórcio sem relação direta com espetáculo do futebol, cujos participantes já tinham obtido consideráveis ganhos na reforma do estádio e no planejamento da licitação) em troca de uma contrapartida que se limita aos gastos de manutenção e a investimentos que não são tão imprescindíveis assim, como um Shopping que até poderia ser erguido e explorado independente do gestor do Complexo;
b) assegurar que a recompensa deste operador privado seja composta também pela exploração da receita de bilheteria proporcionada pelos clubes, ao invés de um aluguel, por exemplo.
Um erro colossal, dado que o Maracanã, erguido e tantas vezes reformado com o dinheiro do povo carioca, existe unicamente porque o Flamengo e seus rivais locais ali provêm o seu conteúdo há mais de 60 anos. E ainda que, ao longo deste mais de meio século os clubes tenham servido para engordar os cofres estaduais e sua famigerada Superintendência de Desportos, nunca se viram sob uma situação tão constrangedora, dado que não há viabilidade econômica no modelo de Cabral que não seja uma exploração vil da receita que os clubes geram.
Insistimos: é inacreditável que o governo tenha tido a audácia de reformar o Maracanã com dinheiro público e, na sequência, o tenha entregado ao operador privado, que já havia participado de fases anteriores do processo, sob uma lógica de soma zero, onde os ganhos do Consórcio que explora o estádio são diretamente proporcionais à perda dos clubes.
Em outras palavras, quanto mais o Flamengo perde, mais o Consórcio ganha. Como um estádio erguido com nosso dinheiro pode ser tão cruel com a sua razão de existir?
Assim, todo o esforço para sensibilizar e pressionar o governo estadual a recuar de seu monstruoso equívoco não pode ser desperdiçado e consideramos que todas as manifestações nesse sentido devem ser incentivadas.
Essa convicção, contudo, não nos impede de refletir acerca da forma como o Flamengo vem lidando com o tema.
A primeira crítica que se impõe é reconhecer que talvez o acordo provisório que o Flamengo fez com o Consórcio pode ser a fonte dos altos custos do estádio em nossas partidas.
A oferta inicial do Consórcio (aceita por Fluminense e Botafogo) consistia em ceder ao clube os setores mais baratos, sem custos adicionais, uma vez que a receita de manutenção viria da exploração dos lugares mais caros e receitas de outras atividades. O Flamengo recusou, para dividir o lucro de todos os setores e das receitas dos bares e estacionamentos.
Vê-se agora que a opção do Flamengo, saudada com entusiasmo na ocasião de sua celebração, está longe de ser a melhor.
Isto porque, quanto maior a receita, maiores os “custos” impostos pelo Consórcio. E as receitas dos bares são pouco relevantes (embora suficientes para operarmos com ganho no modelo escolhido) e assim serão enquanto se mantiver a estúpida proibição da venda de cerveja dentro do Maracanã.
Os autores são testemunhas oculares de que as lanchonetes do estádio estavam às moscas no jogo contra o Cruzeiro, em contraste com os bares do entorno, que “botavam gente pelo ladrão” até minutos antes do início do jogo. Aliás, essa violência contra os hábitos consagrados de beber e celebrar a alegria contribuiu também para aumentar a aglomeração de gente na entrada e impedir o uso das catracas eletrônicas, pois caso contrário não seria possível àquele mar de gente entrar a tempo.
A rigor, se nos dois jogos onde atuou como mandante, o Flamengo tivesse adotado o modelo inicial proposto (ou seja, o modelo do Fluminense), teria ganhado MAIS NA BILHETERIA, conforme demonstra a tabela abaixo. Nela as despesas que não aparecem nos borderôs do Fluminense são retiradas, bem como a receita dos setores mais caros.
Não sabemos todas as condições, uma vez que há cláusulas de confidencialidade. O que fizemos foi simplesmente comparar os borderôs. Uma parte da operação pode até gerar receita para o Flamengo (como a do Quadro Móvel Fla), mas como é uma informação que não está explícita, optamos pelo conservadorismo. Ressalta-se que há receitas não adicionadas nas tabelas acima, como camarotes e bares. No jogo contra o Botafogo, quando foram divulgadas, elas tornaram o modelo escolhido pelo Flamengo economicamente mais favorável, porém dependente de variáveis nas quais temos pouco controle (como fiscalizar a venda de refrigerante e pipoca?). Observem:
Não estamos defendendo que o Flamengo assinasse em caráter definitivo o mesmo ajuste que o Fluminense contratou. Até por causa do prazo de 35 anos. Mas, como já alertávamos à época da assinatura quando a maioria comemorava o “acerto” do Flamengo, o acordo do Fluminense não era tão ruim e o do Flamengo envolvia um risco maior.
Ora, se a grande vantagem do Flamengo é justamente o prazo curto, é melhor aproveitar esse momento para refletir.
E o que menos o Flamengo vem fazendo é refletir. Ao contrário, vem agindo de forma impetuosa, chegando ao ponto de redigir uma “carta aberta” onde faz comparativos com informações claramente erradas (dentre elas, chegou-se ao cúmulo de dizer que o Grêmio teria “custo zero” para jogar em um estádio próprio, quando são públicas e notórias as rusgas do Grêmio em relação à OAS, dona da Arena do Grêmio).
Pior ainda, o clube estimula que se crie “petições públicas” e assemelhados com um discurso anticapitalista e antiprivatista que nada fica dever aos panfletos do PSTU ou Black Blocs, satanizando os operadores do Maracanã, como agentes do mal, um discurso que pode cobrar seu preço em um futuro não muito distante, uma vez que o clube precisa e sempre vai precisar estabelecer uma relação sadia e “ganha-ganha” com os poucos players da indústria de construção e operação de estádios.
O momento, amigos, não é de atirar pedras. O clube precisa, primeiramente, pensar de forma sistemática e estratégica o que realmente pretende. Precisa reconhecer que pode ter errado na modelagem do negócio que firmou com o Consórcio. Precisa considerar que o Maracanã é um componente vital da nossa história e que se ele caiu em mãos erradas, será necessário sabedoria para fazer uma limonada desses caroços.
A luta pela revogação da concessão, concordamos, é prioritária. A conscientização de que houve uma covardia contra os clubes cariocas precisa ser ampliada, a ponto de constranger os políticos envolvidos.
Mas não se pode jogar todas as fichas nessa possibilidade de revogação. Se ela não ocorrer, o Maracanã será do Consórcio por 35 anos – e precisaremos dele. Portanto, é bom começar a pensar em soluções, porque o confronto aberto pode ser uma alternativa, mas que a prudência recomenda que seja uma das últimas a ser tentada.
Walter Monteiro & JEFF
Fonte: Magia RubrO-Negra