Depois do doloroso empate de anteontem em 2 a 2 com o Bolívar, no Maracanã, o jogo do Flamengo na próxima quarta-feira, contra o mesmo adversário, dessa vez em La Paz, é tão decisivo quanto emblemático da trajetória rubro-negra na competição. Nas 11 participações anteriores, o Flamengo começou pelo topo, com o título na estreia em 1981, e jamais fincou sua bandeira no ponto mais alto do continente outra vez. Embora geograficamente a ida à capital boliviana, com altitude de 3.600m, anuncie um movimento de ascensão, em termos esportivos o time precisa vencer para não ver as esperanças descerem ladeira abaixo.
— Mudar, não muda — disse o técnico Jayme de Almeida ao ver o entusiasmo da torcida se transformar em apreensão depois do tropeço que obriga o time trazer bons resultados de La Paz e de Guaiaquil, onde enfrentará o Emelec, na semana seguinte. — O Flamengo não tem medo. Não tem essa de desespero, de acabou na minha cabeça.
Até o último fim de semana, em que o time garantiu o título da Taça Guanabara por antecipação, a capacidade do elenco de se dividir entre o Carioca e a Libertadores servia para multiplicar a confiança e a convicção de que o caminho estava aberto. Num Maracanã vestido para a festa, o revés diante de um Bolívar que só era lembrado por estar na lanterna do grupo deixou a sensação de que algo se rompeu. Com as lesões de Elano e Léo, que deixaram o campo com dores na coxa direita, e de Cáceres, com luxação no ombro direito, a força do elenco deu lugar à necessidade de superação. Diante da improvável volta do trio, resta acelerar a recuperação de Leonardo Moura e André Santos, que ficaram fora do último jogo devido a problemas musculares, mas já estão liberados para os treinos.
— Cáceres e Elano são experientes, mas temos outros dois para voltar. Nosso elenco é muito forte — disse o meia Evérton, artilheiro rubro-negro no jogo de anteontem, diante de um novo batismo que se anuncia, embora já tenha sido campeão brasileiro pelo Flamengo, em 2009.
Depois de marcar dois gols num jogo pela primeira vez em sua carreira, Éverton enche o peito, mas sente que o orgulho não está completo. À espera de sua estreia na altitude boliviana, seus feitos individuais ainda não permitem qualquer comemoração.
— Atuei no México, mas nunca joguei tão alto quanto em La Paz. É complicado, mas vamos esquecer e pensar só no adversário.
Com a obrigação de trazer ao menos dois pontos nos jogos como vistante para decidir a classificação em casa, contra o Léon, o Flamengo trocou a dor da recaída pela estratégia da redução de danos. Além das lesões de jogadores importantes, há dores subjetivas que ainda aprisionam o coração rubro-negro. Orgulho na disputa com rivais regionais, o título da Libertadores jamais perderá o brilho, embora o tempo tenha feito a poeira da euforia baixar até que a glória ficasse encoberta pela dificuldade de revivê-la.
Sem contar com a edição de 1982, quando já entrou na fase semifinal, à época disputada por dois grupos de três clubes, o rubro-negro só se aproximou do título uma vez. Em 1984, a boa campanha que começara com goleada sobre o Santos acabou com a decepção pela eliminação no Pacaembu, após empate sem gols com o Grêmio, no jogo extra que levou os gaúchos à decisão. Contando com a derrota em casa diante do Peñarol em 1982, o Flamengo foi eliminado quatro vezes sem passar de fase. Incluídas as três partidas deste ano, o rubro-negro totaliza 98 jogos na Libertadores, com 51 vitórias (52,1%), 21 empates (21,4%) e 26 derrotas (26,5%). O aproveitamento, que não tem levado o time muito longe, é maior do que o desempenho atual, em que o time tem os mesmos 33,3% de vitórias, empates e derrotas.
Entre as grandes forças do continente, o Flamengo é uma das mais fracas. Na frente dele, há uma dúzia de times que conquistaram a taça duas ou mais vezes. No ranking dos campeões, o rubro-negro divide a 13ª posição ao lado de outros 11 clubes, entre eles LDU, Colo-Colo, Once Caldas, além dos brasileiros Vasco, Palmeiras, Corinthians e Atlético-MG. Associada aos momentos mais sublimes do esquadrão de Zico, o torneio passou a trazer más lembranças para o torcedor rubro-negro, reavivadas pelo empate de anteontem, que também serviu para aumentar o heroísmo da missão libertadora que se anuncia.
— Não tem nada acabado ainda. Ainda faremos três jogos, e tenho certeza de que vamos nos classificar — disse Éverton, entre a esperança e o alerta pelos erros cometidos na rodada. — Conseguimos o mais difícil, que foi virar o jogo. Se a gente tivesse trabalhado mais a bola, teria sido diferente,
Num tom mais duro, sob a emoção do jogo, o zagueiro Wallace apontou faltou maturidade
— Que sirva de lição, que a gente tenha um pouco mais de maturidade e consciência para que os erros não se repitam — projetou Wallace, incluído na própria crítica pela falha infantil no primeiro gol boliviano, em que caiu pedindo falta inexistente, enquanto o ataque rival avançava.
Alerta máximo
A queda do gigante rubro-negro é recorrente nesta fase da temporada em que o Carioca e a Libertadores se confundem. Seja por soberba ou ignorância, tem sido comum que os rubro-negros esperem por facilidades que os rivais sul-americanos não oferecem. Salvo contra os grandes do Uruguai e da Argentina, é raro ver time e torcida mobilizados pelo alerta máximo que a competição exige. Num campeonato que reúne os principais times de cada país, formados por profissionais experientes em busca de conquistas esportivas e materiais, ninguém mais vem ao Maracanã para tirar retrato.
Bem na foto, após sair do ostracismo para a condição de rival qualificado, o Bolívar soube explorar os contragolpes do início ao fim do jogo. Com dois meias que jogam em velocidade na direção do gol, faltou ao Flamengo fazer a bola girar no ritmo de quem tem a capacidade de controlar o jogo e de se impôr como mandante. Afoito no último passe, insistindo na ligação direta, o time partia para o ataque como quem desce uma ladeira sem cadência nem freio. No sentido contrário, o movimento de correr contra a altitude anuncia a inversão. Enquanto a intensidade fica para o time local, que precisa vencer para sair da lanterna, caberá ao Flamengo o jogo da precisão e da inteligência.
— Lá, eles terão que sair para o jogo, e a gente terá outra postura — disse Éverton, à espera dos espaços nos contragolpes para celebrar o encontro do seu bom momento pessoal com a redenção coletiva. — Nosso time é rápido na frente, vamos para vencer.
Em busca do sentimento que batiza a cidade boliviana, o Flamengo quer fazer dela um marco de sua caminhada para voltar ao topo. Capital sul-americana mais perto do céu, La Paz fica num vale cercado de montanhas vertiginosas. Para deixar a cidade sem riscos, os aviões costumam decolar com pouco combustível para ganharem altura rapidamente. Obrigado a fazer o mesmo, o Flamengo o precisa conciliar velocidade com precisão para sair do buraco que ameaça seu desejo de voos mais longos na Libertadores.
Fonte: Extra Globo