O absurdo erro da arbitragem que decidiu o campeonato carioca a favor do Flamengo e a desastrada (para evitar um adjetivo mais pesado) declaração do goleiro Felipe, após a conquista do título, deflagraram uma onda de indignação. Composta quase que exclusivamente por torcedores adversários do Flamengo, naturalmente. Todo mundo falando em falta de lisura da Federação, desonestidade do árbitro e comportamento inadequado do jogador rubro-negro, que achou legal “ganhar roubado”.
Longe, mas bem longe mesmo de considerar correto os fatos citados anteriormente, faço um pequeno desafio aos torcedores de todos os times, não apenas do Flamengo, a recordar episódios cuja ética esteve esquecida. Será que alguém que ler a pequena lista abaixo não vai se lembrar de uma gargalhada de felicidade, uma frase irônica ou mesmo debochada que legitimava os fatos que serão relatados? Desconfio que 99,9% daqueles que protestam contra a honestidade do título do Flamengo já curtiram (para usar um termo da moda nas redes sociais) uma destas historinhas. Claro, afinal de contas beneficiou seu time ou a seleção brasileira.
1962 – O magistral Nilton Santos faz falta dentro da área na partida contra a Espanha, na Copa. Quem perdesse estava fora. Nilton dá dois passinhos à frente e induz a arbitragem a acreditar que a falta fora feita fora da área. “Um lance que mostrou toda a picardia do jogador brasileiro”.
1970 – Pelé acerta uma cotovelada no rosto de um uruguaio maldoso que teimava em lhe chutar os tornozelos durante um jogo duríssimo da copa de 1970. O árbitro ainda marca falta a favor do Brasil. “Pelé era mesmo genial. Sabia bater sem o juiz ver”.
1973 – Armando Marques erra nas contas na decisão por pênaltis entre Santos e Portuguesa, final do Campeonato Paulista, e proclama o Santos campeão numa decisão por pênaltis com a Portuguesa. Ciente de que o equívoco do árbitro poderia beneficiar seu time, Oto Glória, técnico da Portuguesa, retira seus jogadores do Morumbi às pressas. Descoberto o erro, não havia mais como cobrar novamente os pênaltis. Portuguesa e Santos são declarados campeões. “Oto Glória, velha raposa do futebol”.
1974 – A CBD, dirigida pelo vascaíno Heleno Nunes, traz para o Maracanã a final do Campeonato Brasileiro que deveria ser realizada no Mineirão, mas foi transferida sumariamente após um torcedor invadir o gramado na semifinal. No jogo decisivo, Armando Marques valida um gol irregular de Jorginho Carvoeiro e anula um legal de Zé Carlos, armador do Cruzeiro. Vasco campeão. “Erros de arbitragem acontecem”.
1981 – José Roberto Wrigth expulsa meio time do Atlético-MG numa partida decisiva da Libertadores de 1981. O Flamengo, beneficiado com o acesso de fúria do árbitro com menos de meia hora de jogo, acha tudo “natural”. Daquele jogo, o Flamengo parte para a inesquecível conquista da América.
1985 – O mesmo Wrigth não marca um pênalti do zagueiro Vica sobre Cláudio Adão, do Bangu, no último minuto da final do Campeonato Carioca. Felizes, os tricolores saem do Maracanã aos gritos de “Tricampeão!”
1986 – Imprensa denuncia um esquema denominado “Papeletas Amarelas”, que põe em dúvida a lisura do Campeonato Carioca conquistado pelo Flamengo. Fica por isso mesmo.
1995 – Túlio faz um gol em impedimento na final do Brasileiro. Gol confirmado, título conquistado. E tome festa. “Túlio Maravilha, maior ídolo alvinegro dos últimos 30 anos”.
1997 – Vasco consegue efeito suspensivo e escala Edmundo, melhor jogador do Campeonato Brasileiro, na final contra o Palmeiras. Edmundo fora expulso na primeira partida. Vascaínos em êxtase, vibram com a conquista de seu terceiro título nacional. “Eurico deu nó em todo mundo”, numa alusão à manobra do então presidente vascaíno, Eurico Miranda.
2005 – Tinga invade a área do Corinthians, dribla Fábio Costa e é derrubado. O árbitro Márcio Resende de Freitas entende que não houve o pênalti e que Tinga simulou a falta. Expulsa o jogador do Inter, que se vê privado da possibilidade de vencer o jogo. O Corinthians acabaria campeão e o Inter em segundo lugar.
Há dezenas de histórias parecidas, ouse já, polêmicas. Questões que deixaram de cabelo em pé os prejudicados e sorridentes os beneficiados. No futebol funciona assim. E sabemos disso.
Mudar é preciso, claro. Mas num país onde falcatruas, corrupções aparecem em ações do Congresso ou no sinal de trânsito, querer corrigir os defeitos da sociedade a partir do futebol é hipocrisia. Todos, como cidadãos, precisamos melhorar. Desde os valores que saem de casa, ao comportamento dentro do ônibus, na fila do banco, no trânsito, no trato com superiores e subordinados. A melhoria no futebol virá como consequência de uma sociedade mais vigilante e respeitosa consigo mesmo.
Não crucifiquemos os rubro-negros que festejam seu título, fruto de um gol irregular sim, mas também de uma campanha melhor em toda a competição. Não joguemos pedras para o alto. Porque o telhado de todos é de vidro.
Fonte: Blog do Paulo Julio Clement