Faltam 15 minutos para o início da cerimônia quando Aline Bordalo caminha até a pontinha do camarote que dá vista para o gramado do Maracanã e dá um suspiro alto. Ela está enfiada num vestido delicado da Casa Assuf, usa uma tiara discreta na cabeça e carrega pelo menos duas horas de maquiagem no rosto. À sua frente está um estádio em silêncio, com o gramado verdinho, as luzes azuis na marquise, as cadeiras de plástico duro e um mundo inteiro de histórias para lembrar: os dribles, os gols, o grito da torcida, o barulho dos morteiros, a ôla, a descida na rampa, o empurra-empurra na entrada, o cachorro-quente Geneal, o saquinho da mostarda que não abre, o hino do time, o cheiro de xixi, o suor, a arquibancada de cimento quente, a cerveja quente, a batucada, a mãe do juiz, a porradaria, a chuva de vento, o abraço no desconhecido do lado, o surdo de marcação, o frio na barriga, as muitas vitórias, as muitas derrotas e a emoção que naturalmente vem junto disso tudo. Aline dá dois passos pra trás, respira fundo e depois fala baixinho, naquele português descontraído das modernas noivas de arquibancada.
— Putz, agora só falta eu chorar antes do negócio começar e borrar toda a maquiagem. Isso aqui é um templo — diz ela, girando o buquê nas mãos, como se comemorasse um gol do Botafogo no último minuto. — O meu templo.
Desde o dia 16 de junho de 1950, quando o primeiro torcedor colocou os pés nas arquibancadas do velho estádio Mário Filho para assistir ao amistoso inaugural entre as seleções do Rio e de São Paulo, a coisa funciona mais ou menos assim. Ninguém fica indiferente ao Maracanã. O estádio é um lugar de oração, reza, mandinga e reverência — fé, em última instância. Passados 64 anos, o lugar — mesmo diminuído, modificado, “arenizado’’, multiusado, plastificado, repaginado e recolorido — continua, de muitas maneiras, sendo o que sempre foi. Mas o casamento de Aline e Alexandre Araújo, celebrado na última segunda-feira na área de camarotes do Setor Leste (antiga rampa do Bellini), aponta para novas tendências de ocupação do antigo templo. A moda agora é fazer evento no Maracanã.
O casamento de Aline fez parte de uma festa promovida pela revista “Inesquecível casamento’’ e foi realizado no espaço Bossa Nova, uma das 22 opções de aluguel oferecidas pelo consórcio que administra o Maracanã. É um salão de 135 metros quadrados com capacidade para até 160 pessoas. Um dos camarotes laterais virou camarim para a noiva. O altar foi montado numa espécie de varanda no espaço de convivência entre os camarotes. Dali se tem uma visão privilegiada do estádio, bem próximo ao campo de jogo. Após a cerimônia, o lugar é rapidamente tomado por uma barreira de convidados fazendo selfies como se estivessem à beira do gramado. As fotografias tendo o estádio como fundo são mais disputadas que os bem-casados no fim da festa.
— Qualquer um quer estar associado a uma marca como o Maracanã — explica Fabiano Nieredauer, da 3R Studio, organizador da festa, que evita dizer quanto gastou na noite. — É segredo de contrato, mas posso garantir que é um ótimo investimento.
Na cerimônia, o pastor recorreu às inevitáveis metáforas sobre jogo, time e vitória coletiva. Os noivos, que já viveram muitas histórias ali dentro, seguiram o mesmo tom. Aline (alvinegra, repórter da Band Sports e que já escreveu um livro infantil sobre os quero-queros que habitam o gramado) disse que Alexandre (tricolor e apresentador do Popbola na Rádio Bradesco FM) era sua maior conquista. Ele disse que o casamento era um gol de placa.
Iniciativa segue tendência mundial de arenas multiuso
Depois veio a festa com ar-condicionado tinindo, arranjos de flores, bufê com jantar, espumante nacional, uísque escocês, meninos de terno escuro, garotas de vestido curto, bateria de escola de samba e orquestra com seis músicos e dois cantores. Tudo padrão Fifa.
— Espumante e Maracanã, tudo a ver — brindava uma das convidadas, que comentava jamais ter pisado no estádio em dia de jogo.
A estratégia de alugar espaços para eventos privados faz parte de uma tendência cada vez maior em todo o mundo: transformar tradicionais estádios em arenas multiuso. É o que acontece no Camp Nou, do Barcelona, no Estádio do Dragão, do Porto, e em Wembley, em Londres. O Maracanã, sobretudo este ano, está rezando na mesma cartilha. De agosto a dezembro de 2013, foram realizados apenas 25 eventos no lugar. Em 2014 já estão confirmados mais de 150. Tem de tudo.
Nos últimos 60 dias já houve aniversário de criança e festa à beira do gramado regada a Veuve Clicquot. Já rolou show de samba (para 1.500 pessoas, com ingressos a R$ 80) e Bar Mitzvah animado pelo Gabriel o Pensador. Não é só. Na última terça-feira, 11 mil candidatos faziam prova de seleção para a Marinha espalhados pela arquibancada. O preço médio para alugar um pedaço do Maracanã — só o espaço físico, sem nenhum acessório, nem café — está em torno de R$ 25 mil.
— Alugamos desde pequenos espaços interiores para 20 pessoas, com preço inicial de R$ 1.430, até o maior de todos, no Lado Oeste, a R$ 31.580 — informa a gerente de eventos Viviane Campano, explicando que o preço varia de acordo com o tamanho e com a proximidade do gramado. — O gramado é o nosso mar. É como ter um apartamento com vista para a praia: todo mundo quer olhar o campo, a grama exerce esse fascínio. Mas é proibido pisar no gramado. Nada pode prejudicar a nossa atividade fim. A nossa vocação é o futebol.
Concessionária Maracanão fechou 2013 no vermelho
A opção pelos eventos segue, além da tendência mundial, uma necessidade de reforço no caixa. O demonstrativo divulgado em março passado pela Concessionária Maracanã (grupo formado por Odebrecth, IMX e AEG) mostra que até dezembro de 2013 o balanço simples (receitas menos custos) fechou no vermelho, com um prejuízo bruto de R$ 34 milhões. Em 2014, a Copa do Mundo alavancou a procura pelos espaços para eventos, mas a entrega do estádio à Fifa, entre 22 de maio e 13 de julho, acabou brecando um pouco o ritmo. Até lá — e depois da Copa —, a ideia é continuar investindo na mágica que a simples pronúncia da palavra Maracanã provoca nas pessoas.
— É uma marca muito forte, com caráter. Não existe um novo Maracanã, existe o Maracanã de sempre, só que mais confortável. É um lugar seguro para levar a família — diz o gerente de marketing Marcelo Hargreaves, que se baseia, entre outros dados, em pesquisa da DataFolha que diz que 82% do público acham que o estádio melhorou depois da reforma. — E também é irreal essa história de que os preços estão maiores. Se você pegar o valor que se pagava para assistir aos jogos em pé na geral há 20 anos e atualizar, vai ver que é o mesmo que se paga de meia-entrada para ficar confortavelmente sentado na arquibancada.
O preço do ingresso é estabelecido pelos clubes. O consórcio tem contratos diferentes com Botafogo, Flamengo e Fluminense. O Campeonato Estadual esvaziado e a precoce desclassificação dos clubes cariocas na Copa Libertadores da América jogaram as receitas de bilheteria ainda mais para baixo. O custo continua alto. Para um jogo de lotação máxima (78 mil pessoas) é prevista a escalação de 800 seguranças patrimoniais (de colete verde) responsáveis, entre outras funções, por proteger o campo e, educadamente, pedir que os torcedores tirem os pés do encosto dos assentos nas arquibancadas. Fora do estádio podem ficar até 650 orientadores de público (de roupa e bonés vermelhos), que auxiliam no acesso dos torcedores. São os “Posso ajudar?”
— A gente ouve de tudo — conta Maicon Santos, designado para dar ajuda aos torcedores que chegavam à ala Sul, no último domingo, dia de Botafogo x Internacional. — Teve um cara que respondeu “Depende, se você for canhoto vai ajudar muito se botar o uniforme e entrar no lugar do Júlio César na lateral esquerda”. A maioria só quer mesmo é ver o time ganhar.
Oskar Metsavaht, dono da grife Osklen, também quer. Ele não é exatamente um entusiasta do futebol. Nos dias de domingo, sempre preferiu o surfe e a praia. Mesmo não tendo uma história pessoal com os jogos realizados ali, Oskar tem uma paixão íntima pelo Maracanã e um time para comandar. No mês de fevereiro, ele escolheu um dos auditórios do estádio para reunir e motivar seus vendedores enquanto apresentava a nova coleção. Mais: depois da palestra, os funcionários foram levados ao vestiário, onde as peças estavam expostas em araras, como obras de arte, nos armários destinados aos jogadores.
É em torno dos vestiários — principalmente em torno dos armários de Fred e Neymar — que se aglomera a maior parte das pessoas que fazem o tour pelos bastidores do estádio. As excursões no Maracanã, que eram tímidas antes da reforma, transformaram-se numa nova fonte de receita. Turistas brasileiros, estrangeiros, estudantes de escolas públicas, adolescentes loucos por futebol e grupos de idosos se espalham da tribuna à beira do gramado. Só no domingo de Páscoa foram 3.200 visitantes. Os ingressos saem a partir de R$ 15, a meia-entrada. Na última terça feira, o estudante Bernardo Raposo aproveitou o cochilo dos seguranças e deixou um recado, escrito num papel de caderno, embaixo da camisa 10 de Neymar: “Sou seu maior fã. Joga a Copa por mim!’’
O pedido de Bernardo nem é o mais inusitado. A utilização de múltiplos espaços para promover os eventos tem levado a propostas do fundo do baú. Já teve gente querendo fazer festa nas cabines de transmissão da Globo. Há os que imaginam instalar uma tirolesa entre as marquises. Outros queriam utilizar a banheira de hidromassagem dos vestiários para uma pool party. Sem contar os muitos que sonham simplesmente em fazer a pelada de fim de ano da firma no campo principal, com direito a churrasquinho e cerveja gelada à beira do gramado.
— Posso dizer que quase tudo é negociável — ri a gerente Viviane Campano. — Estamos estudando até o aluguel do campo de jogo no período entre o fim do Campeonato Brasileiro e o início do Carioca, quando não há prejuízo para os jogos da competição.
É começar a treinar.
Fonte: O Globo