Acompanho com interesse a atual gestão do Flamengo. Mais que isso: torço para que dê certo. Essa torcida nada tem a ver com o que acontece ou acontecerá em campo e ela existe porque, sendo vitoriosa no que realmente conta, que é levar o clube a uma situação financeira saudável e a uma vida sustentável, um excelente exemplo terá sido fornecido, mostrando o caminho para muitos outros clubes brasileiros, cada um dentro de suas características e possibilidades.
Escrevi anteriormente e repito agora, algo que, estou certo, repetirei novamente no futuro: é preciso dar uma trégua ao desejo que todo torcedor tem de título, título, título… Se o torcedor sonha com títulos futuros, tem que trabalhar para isso agora, e simplesmente apoiar o clube – reparem que escrevi clube e não time. Esse é, a meu ver, o melhor exemplo que pode dar um torcedor nesse momento. Porque para ter títulos é preciso existir um clube.
Curiosamente, a primeira vez que escrevi a respeito dessa gestão foi para criticar seu recém-contratado diretor executivo de futebol, Paulo Pelaipe, que tão logo saiu do avião em que chegara ao Rio de Janeiro já disparou que o negócio era “botar faixa no peito”. Não, não, esse não era o “negócio”, como ainda não é e tão cedo não será. O “negócio” é manter o clube vivo e cada dia mais saudável e sustentável. Grandes times, grandes títulos, serão decorrência disso.
Pausa para a Lei de Responsabilidade Fiscal no Esporte
Os clubes brasileiros precisam “cair na real” em relação às suas tenebrosas situações econômico-financeiras e, tanto ou mais ainda que os clubes, os seus torcedores. Porque em algum momento futuro essa verdadeira farra com o dinheiro público – dinheiro do povo, dinheiro de todos e não desse ente meio mítico que no Brasil é chamado de “governo” – terá que acabar.
Um bom exemplo do que falo é o falecido projeto Proforte. Na minha visão e de muita gente, era só mais um perdão para dividas, apesar de dirigentes de clubes espernearem quando se falava isso. Mas era isso mesmo: um perdão disfarçado. Até por ser um projeto tão bonzinho, as pressões para sua aprovação foram enormes. Presidentes, vice-presidentes, diretores de clubes iam periodicamente a Brasília e transitavam pelas salas da Câmara dos Deputados, fazendo lobby pela aprovação do projeto “salvador”. Mais um projeto para salvar quem não faz esforço algum para se salvar.
Apesar disso, a comissão designada para analisar o projeto Proforte simplesmente baniu-o, falando em termos práticos, e seu relator, o deputado Otávio Leite (PSDB-RJ), criou um substitutivo: a Lei de Responsabilidade Fiscal no Esporte. Essa lei, dentro de nossa realidade e condições, é um grande avanço para a sociedade, para os cofres do Estado e, principalmente, para os próprios clubes, que precisarão enquadrar-se a uma outra realidade econômico-financeira, necessariamente mais contida, mais realista e – de novo a palavra mágica – sustentável.
Mais: a Lei prevê que um clube só poderá disputar uma competição depois de apresentar a sua CND – Certidão Negativa de Débito – antes do início da mesma. Se não apresentar, não disputará. Independentemente de qualquer outra disposição, essa exigência terá um tremendo impacto sobre as gestões dos clubes de futebol.
Ao mesmo tempo em que a população como um todo clama por mudanças, seriedade e responsabilidade no trato das coisas públicas, não é possível que os clubes de futebol, amados ou não, paixões ou não, sigam nessa vidinha fácil de não pagar impostos e gastar muito mais do que ganham, criando, alimentando, sustentando dívidas monstruosas que se tornam pura e simplesmente impagáveis.
Uma gestão responsável… E chata
Pois bem, dentro de suas possibilidades a gestão do presidente Eduardo Bandeira de Mello acabou ou reduziu ao possível essa bagunça. O clube cortou despesas. Cortou gorduras, supérfluas, mas cortou músculos, também. Tentou viver dentro da realidade, pagando as contas e colocando o clube em ordem. Sem sonhos megalomaníacos, sem promessas mirabolantes, tão ao gosto de grande parcela da torcida e também de parte da mídia.
Uma gestão “chata”, em suma. Agora com aspas.
No ano passado, por ocasião do 3º Business FC, em São Paulo, o presidente do Flamengo disse, em público, que nesse ano brigaria pelo prêmio da Pluri Consultoria de Clube Mais Transparente do Brasil.
Brigou e ganhou, merecidamente.
Parece pouco?
Pouco não foi, de jeito nenhum, foi muito. Foi uma conquista até pequena, pode-se dizer, que pouco repercutiu, mas que foi muito importante por se tratar de um clube que vinha numa terrível escalada negativa em relação às suas prestações de contas e deu uma prova real e comprovatória não mais de intenções, ótimas intenções, mas de práticas concretas de gestão visando sanear as finanças do clube. Ora, no cenário de nosso futebol isso merece aplausos e, mais importante, apoio.
Agora, curiosamente, mas não por coincidência, avolumam-se as críticas dentro do clube à prática de submeter toda despesa de porte, principalmente contratações e negociações de contratos no futebol, ao crivo do vice-presidente financeiro, que tem poder de veto. Acontece que orçamentos não são enfeites e sim documentos que precisam ser seguidos, especialmente quando se busca recuperar uma empresa, um governo, uma entidade, um clube de futebol. E é essa a missão, mais que função, dessa gestão. Pelo burburinho que brota da Gávea é grande a insatisfação de lideranças políticas do passado com essa situação, como, por sinal, já foi deixado claro em matéria recente aqui do portal GloboEsporte.
Essas reclamações levam-me a pensar que a atual gestão está correta.
E o futebol?
Aqui o bicho pega, mas não vou alongar-me.
Crise é oportunidade + risco, como já virou moda dizer e citar o ideograma chinês para essa palavra, que é uma combinação dos ideogramas para oportunidade e risco. Em meio à turbulência da má campanha no Brasileiro, o treinador Jayme e o diretor executivo de futebol, Pelaipe, foram demitidos.
Para comandar o time foi contratado Ney Franco, treinador que considero o melhor do Brasil da nova geração, e que, aparentemente, ainda não entrou no clube dos salários fora da realidade e sem o mínimo senso de realidade.
Completando o comando, veio o executivo Felipe Ximenes, profissional novo na área e com ótimas referências.
Saindo do vestiário e entrando na ala da diretoria, há poucos dias o vice-presidente da área demitiu-se.
No final das férias, jogadores e comissão técnica já encontrarão um clube diferente e terão cerca de 30 dias até o primeiro jogo no Brasileiro. São intensos os rumores sobre saídas e chegadas, e muitos deles devem ser verdadeiros, o que não significa que os jogadores comentados venham a ser contratados.
Pode-se dizer que a crise trouxe, ela mesma, as ferramentas para solucionar a si própria.
Reiniciado o campeonato, o time terá 29 partidas para mostrar serviço, mostrar a que veio e, nesse momento, a grande meta deve ser a permanência na Série A e – por que não? – a disputa da Copa Sul-Americana. Muito pouco, gritará grande parte da torcida. É quando voltamos ao início deste post: menos pressão e mais apoio, sem foco em título.
Não faz muito tempo, quando ainda era vice-presidente de futebol na gestão de Marcio Braga, Cleber Leite disse que era terrível tentar administrar o futebol e ser surpreendido por “fantasmas do passado”, referindo-se a dívidas, algumas monstruosas, que pareciam brotar do nada e comprometiam todo o orçamento e, frequentemente, o fluxo de caixa imediato do time. Profissional interessado na área de gestão dos clubes de futebol, eu nunca esqueci esse desabafo e toda a situação de incerteza e a carga de problemas que ele sinalizava. Não é impossível, mas é extremamente difícil administrar qualquer coisa com esse tipo de pressão e com “surpresas” como essas a que se referiu o dirigente rubro-negro.
Quanto a um outro fantasma, esse bem atual, o rebaixamento, é cedo demais para tanta crise, como disse no título. Ney é excelente treinador e terá tempo para trabalhar, o mesmo ocorrendo com Ximenes.
O maior risco que corre o Clube de Regatas do Flamengo hoje não é o rebaixamento e sim um abandono ou uma “flexibilização” da política séria, responsável e austera que a atual gestão implantou.
Correndo o risco do apedrejamento virtual: o maior pecado que um torcedor associado ao programa de Sócio-Torcedor pode cometer, nesse momento, é abandoná-lo.
Fonte: Olhar Crônico