O Flamengo está, mais uma vez, fervendo. Claro, estamos falando dos resultados que trouxeram sete pontos em nove jogos, um aproveitamento de 25% que credencia um time de futebol a ir para a Série B em 2015. A irritação com a crise é tão grande que se esquece que ainda há mais 29 jogos pela frente – mas como pensar nisso quando o capitão do time (e eterna fonte da imprensa) volta pro segundo tempo sem a faixa de líder e vários jogadores fazem ameaças no intervalo de um jogo? Sim, o Flamengo está em chamas e tudo parece estar desabando. A marca Flamengo parece estar sob um risco inédito (sabemos que não é verdade, mas vá lá) e prestes a desmoronar. E estamos falando da maior marca do futebol mundial.
Já discorri sobre o primeiro reposicionamento da marca (quando da vitória dos azuis) em 2013, em um artigo no qual lembrava que o Flamengo foi sendo dilapidado ao longo dos anos, com uma ou outra boa administração no futebol e quase nenhuma no geral. O patrimônio foi se dissolvendo em meio às dívidas, muitas delas contraídas devido ao nosso ethos de desejo insano pela vitória – algo que é natural, considerando a posição do Flamengo como predador maior do futebol brasileiro (MUHLEMBERG, ARTHUR, 2003).
Mas mudanças organizacionais jamais são fáceis. Para produtos, por exemplo, como sandálias Havaianas e cosméticos Natura (para citar dois cases frequentemente analisados por estudantes de Marketing das faculdades), foi preciso investir em reposicionamento de marca, canal de distribuição, desenvolvimento de novas características de produto e muita publicidade e propaganda, além de eventos. Mas estamos falando de sandálias e perfumes. Como comparar com o Flamengo? Simples: o Flamengo é uma espécie de marca do Oceano Azul do futebol; para quem não conhece a expressão, esta é originária do livro “A estratégia do Oceano Azul”, de W. Chan Kim e Renée Mauborgne, dois representantes do The Blue Ocean Strategy Institute e da INSEAD, escolas de business europeias. Resumindo a ópera, a estratégia do Oceano Azul é a marca criar um mercado apenas para ela, mais que fidelizando o cliente – navegando solitária num oceano azul sem ondas ou conflitos. Podemos dizer que é o caso das Havaianas (você não conhece outra marca de sandália), da Apple (por sua capacidade de fidelizar, copiada pelo Google/Android), do Cirque du Soleil (citado no livro), que são produtos que não disputam fatias de um mercado, e sim têm seu próprio mercado, sujeito, claro, a oscilações.
O Flamengo também é um produto que está no Oceano Azul: nada concorre com ele na percepção dos clientes – os rubro-negros não aceitam imitações e os não-ungidos torcem contra o Flamengo como se nada mais tivessem para fazer na vida. A desgraça do Flamengo é, para os arco-íris, muito mais digna de júbilo que o (raro) triunfo de seus próprios times, mormente quando tratamos de Rio de Janeiro.
Ora, estamos quase rebaixados, dirá o torcedor desesperado, mais preocupado com a perebice do André Santos, ou seja, a (feia) árvore, do que com o desenvolvimento do clube, ou seja, a floresta. Sim, os Azuis certamente erraram. E erraram feio. Por inexperiência no futebol. Sabemos que este não é um mundo fácil. Erraram ao compor o elenco, erraram de forma inacreditável ao contratar Ney Franco (uma decisão que pode custar a Série A), erraram ao valorizar demais jogadores que no máximo seriam banco da Luverdense. Sim, erraram nas decisões e deveriam ser os primeiros a comunicar esta auto-avaliação. Acredito que estejam tentando – mas o gigantesco ruído que o “mercado” faz (no caso, torcida), com a mídia especializada incensando e instigando, não permite comunicação eficiente. Emissor não dá conta. Receptor não dá nem pelota. O ruído rules.
O que acontece nos casos de grandes mudanças organizacionais é comum a todas as empresas – e isso não exclui o Flamengo. As definições de mudanças são muitas e variadas: institucional, transformacional, contínua, episódica. Em quase todas elas há questionamento da visão, missão e valores da organização. Daí existir também no Flamengo a dicotomia CND x Resultados em campo, como se fossem objetivos que se opõem (a oposição assim o quer). O time perde? Ah, mas tem a CND. Por que a CND não entra em campo?
Há uma pesquisa que indica que há pelo menos 10 ou 12 fatores que influenciam pro bem ou pro mal as Mudanças – o Google está repleto disso. As características do ambiente organizacional (principalmente turbulência, complexidade e competitividade); as características do desempenho organizacional (especialmente seu decréscimo); características da alta gerência da organização (aspectos de personalidade e crenças); características da estratégia organizacional (defensiva ou prospectora); e características da estrutura organizacional (centralização, padronização, especialização e interdependência).
Cada um destes fatores que eu citei (e, admito, estão no Google quase com a mesma frequência da palavra Sexo) pode afetar para bem ou mal as mudanças e seus processos. Mas há um ponto de convergência nestas colocações: as mudanças realmente estruturais são provocadas pelo ambiente turbulento, já que o mesmo exige da organização e de seus associados um novo posicionamento diante das ameaças. Foi o que aconteceu com a supracitada Natura (e mais uma vez se você for ao Google e buscar pela revista EXAME vai ter chance de ler a história toda): de um resultado anual vexaminoso em 2004 para uma desvalorização de quase 50% em 2008, os caras da Natura se levantaram com um plano de ações, com uma série de medidas de alcance global e localizado, e em 2009 festejaram 77% de aumento nos lucros.
E aí finalmente chegamos ao nosso “produto”, se é que o leitor farto do quase-economês chegou até aqui. O nosso Sócio-Torcedor é como se fosse as nossas ações na Bolsa, a nossa reputação e a capacidade de sinalizar ao mercado que temos futuro. O Flamengo precisa dele como nós precisamos do Flamengo. É um programa importante demais para ficar sujeito a oscilações tão banais como as decisões horrendas do Ney Franco ou as pixotadas dos nossos laterais. O Sócio-Torcedor é algo que pertence a nós e nós pertencemos a ele.
O grande problema é que, reconheçamos, o clube comunicou muito mal o que é o Sócio-Torcedor. Na maior parte do tempo o que se viu foi uma espécie de chantagem emocional, tal como se viu nas já famosas mensagens do placar eletrônico. O ex-vice-presidente de futebol incorreu no mesmo erro ao sair, criticando “quem é miserável a ponto de não poder dar um real por dia pro Flamengo”. Ora, o Flamengo precisa construir uma relação muito maior do que a de mera cobrança. O Sócio-Torcedor é a primeira forma concreta de relacionamento do TIME com os 40 milhões de rubro-negros espalhados por aí. Não é para aderirmos por obrigação ou porque “sem eles não teremos jogadores” (ora, não tínhamos sócio-torcedor em 1981 e fomos campeões do mundo).
A Comunicação do Sócio-Torcedor, a forma com que o clube se refere a ele, tudo isso precisa ser ajustado. Não estou falando de mudar pessoas, mas sim de fazer as pessoas mudarem as práticas. Quanto critico a Comunicação do clube, não falo mal de A ou B e nem entro nessa discussão boba de “fulano é Vasco” ou “fulano é tricolor”. Bons profissionais são bons profissionais sempre. Mas isto não impede que a gente tente criticar e ajudar. E hoje, tenho certeza de que é preciso que os torcedores do Flamengo entendam e sintam:
a) ST dá sensação de pertencimento. Você que é ST tem que se sentir pertencente a algo maior, ou seja, à maior torcida do mundo. Não podemos pensar menor que isso. Não é para termos a sensação de que somos impotentes e só conseguimos comprar o Mugni
b) O ST vai sobreviver aos Azuis. Sim, a ideia é que este seja um patrimônio eterno do clube. O Flamengo é um dos maiores do mundo, precisa ter ST como se fosse uma carteira de identidade rubro-negra. Mais: um CPF rubro-negro.
c) O ST é uma forma de ser ainda mais Flamengo e ainda ganhar com isso. Ter descontos, ter privilégios, comprar ingressos, receber em casa, imprimir no trabalho, tudo isso é essencial e tem que ser comunicado o tempo todo. O ST tem que ser citado nas entrevistas. O ST poderia até sortear lugar em entrevista coletiva para o torcedor (sim, é arriscado, mas que torcedor leigo não gostaria?)
d) Quem não tem ST não é pior que ninguém. Mas quem tem precisa se sentir melhor – por mais que isso soe feio aos ouvidos. Porém, é necessário. O cara precisa abrir a carteira, mostrar o cartão magnético e olhar com desdém para o cabra que não tem o ST. Isso é básico em marketing e está presente em um dos maiores livros sobre capitalismo existente: OBELIX E COMPANHIA. “Seu vizinho tem escravos, bigas, mulheres, liteiras, mas…ele tem um menir?”
e) O ST é voluntarioso, mas seu princípio não pode ser o da “vaquinha” ou da “rifa”, a velha “ação entre amigos”. Você entra para o ST não apenas porque gosta do Flamengo, mas porque quer ser um pedaço da nação, quer pensar que manda, que pode mais. Você entra para o ST porque precisa do Flamengo. E porque o Flamengo precisa de você. Esta relação, este casamento, jamais pode ser rompido.
Assim sendo, depois que refletimos sobre as mudanças organizacionais e suas dores e dificuldades, creio que fica mais fácil entender: várias coisas estão sendo construídas, vários erros cometidos – mas por conta destes últimos não se pode derrubar os primeiros. E dentre estes, o Programa Nação Rubro-Negra de Sócio-Torcedor é uma espécie de “maior prazer”, como consta no hino. É para ser usado como a velha e revoltante propaganda da tesourinha: “eu tenho, você não tem”. Uma frase que nós vivemos repetindo, quando falamos de Libertadores e Mundial, ou seja, não vai doer nada.
O Sócio-Torcedor é a forma que o Flamengo tem de repetir aquele velho chavão: “seja você a mudança que você deseja”. Proteste, xingue, reclame, peça a saída de todos que você achar que deve sair. Mas não saia do ST, não saia da mudança que você deseja e pode realizar.
Gustavo de Almeida
Mengão Sempre
Fonte: Urublog