O que nos faz mais Flamengo.

Existe um sentimento no futebol que ainda não tem nome. Eu chamaria de Sentido do Parentesco, que é quando pais e filhos dividem o mesmo ídolo e este, por sua vez, acaba ocupando um lugar no nosso coração que é destinado a uma pessoa da família. E este Sentido do Parentesco é, no meu caso, relacionado a todos da geração mundialista de 1981 do Flamengo, tendo como grandes patriarcas, naturalmente, Zico e Júnior. Daí eu estar um pouco contrariado com o fato de a Copa do Mundo (um maravilhoso torneio porém infinitamente menor que o Flamengo) ter de certa forma colocado em segundo plano uma data magna do nosso futebol e da nossa vida em sociedade: os 60 anos de Leovegildo Lins Gama Júnior, o maior-lateral esquerdo e posteriormente um dos maiores meias de todos os tempos.

O Falando de Flamengo, tanto no portal quanto nas redes e mídias sociais, celebrou Júnior à altura de sua importância, o que me deixa mais confortado. O “Capacete” (na narração inesquecível de Jorge Cúri) é aquele caso parecido, para mim, com Rolling Stones e The Who (Beatles é um outro gênero, solitário, em seu próprio Oceano Azul): quando o vejo jogar, acho que é o Maior do Flamengo. Do mesmo jeito que, quando revejo gols de Zico, também o acho maior que o Flamengo. Ver os Stones ao vivo e o The Who, particularmente na Ilha de Wright, nos dá essas certezas em formato de dúvida: tanto Stones quanto Who “são” a maior banda de rock and roll de todos os tempos. Quando, no primeiro jogo da final do Brasileiro de 1992, Júnior dribla Renato Gaúcho duas vezes e o Maracanã vem abaixo, ele é, sim, o Maior Craque Rubro-Negro da História.

No fim do ano devo lançar um livro sobre este Sentido do Parentesco, onde descrevo a relação existente entre o meu pai, o Flamengo e eu, principalmente naqueles anos incríveis de 1978 a 1983. Júnior, claro, ocupa um lugar de protagonista nesta saga. Mas por respeito à memória de meu pai, não citei os 20 dias de mau humor que passei há uns 10 anos, quando um comentarista de rádio que fazia papel de escada do Juca Kfouri disparou a seguinte besteira: “Roberto Carlos é o maior lateral que vi jogar, maior até do que Júnior”. Já naquele tempo, anos depois do Júnior ter parado, eu sabia que isso era completamente absurdo. E pensei que o citado jornalista realmente deve carecer do Sentido do Parentesco. Este sentimento, que vai se perdendo no futebol de hoje, distorce, sim, as nossas percepções sobre o esporte, mas incrivelmente nos leva às dimensões exatas das coisas. Sim, Roberto Carlos ganhou a Copa de 2002 (com a incrível participação de um gol contra a poderosa China), e Júnior não ganhou Copa. Distorcendo a percepção de ambos, deixando com que o Sentido do Parentesco influencie meu julgamento, eu chego à conclusão que é muito mais próxima da realidade: não há como outro lateral dos últimos 40 anos chegar sequer perto de Júnior.

No livro “Ser Flamengo” (editora Folha Seca, org. Luis Eduardo Wetzel), escrevi um artigo no qual recordo uma derrota – para o Botafogo por 1 a 0, gol de Renato Sá. Era um jogo importantíssimo, pois bateríamos a marca de 53 jogos invictos (!), pertencente ao próprio Botafogo. Depois de uma atuação antológica do goleiro Borrachinha, do Botafogo, o jogo chega ao final, mas Júnior tem uma chance de bater de primeira, de dentro da área. A bola sobe, por cima do gol, e para sempre. Por que recordei esta derrota? Simples: para que os imbecis da objetividade pudessem entender que nosso ponto não é, jamais, ter como ídolo alguém que “conquistou título” (mas é claro que Júnior conquistou dezenas pelo Mengão), e sim alguém que entende o que é ser Flamengo.

Nos poucos segundos em que aparece depois da bola subir para sempre, o Capacete crispa as mãos, e se paralisa diante da perda. Mas sua expressão, sua dor, é a de quem entende significado e significante, de quem vê o espírito do Flamengo em cada esquina, conversando com Leônidas, Domingos da Guia, Perácio, Tomires, Dequinha, Dida e Pavão. Este Ser Flamengo tão vivo, tão à flor da pele, é o que torna Júnior ainda mais grandioso do que ele já seria apenas pelo futebol inigualável. Não apenas pelos 872 jogos vestindo rubro-negro, não apenas pelas 504 vitórias.

Sim, senhores: este hoje sexagenário é maior até do que o Zico, quando o vejo jogar. Deus quis que os dois tivessem o mesmo número de títulos (42) pelo Flamengo. Deus também entende o Sentido de Parentesco – neste sentido, Zico e Júnior são irmãos gêmeos, fruto do mesmo big bang rubro-negro, heróis univitelinos que, se o mundo fosse justo, deveriam ter um nome só.

Obrigado, Júnior, por ter nos ajudado a ser sempre mais Flamengo.

Fonte: Falando de Flamengo

Coluna do Flamengo

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