Uma brecha na lei e um acordo feito pelo sindicato de atletas de futebol são a soma perfeita para uma indústria de mais de R$ 130 milhões. A briga pelo direito de arena, o ‘cachê’ que os jogadores recebem por aparecerem na TV (e que não se confunde com os salários e prêmios que recebem), criou um gigantesco mercado paralelo, que tem enchido a pauta dos tribunais, com mais de 400 ações espalhadas Brasil afora.
Os advogados que atuam no setor não são muitos, mas viraram inimigos dos clubes. No boca a boca, os especialistas, famosos no meio, são indicados de um atleta para outro, com a promessa de grande retorno financeiro, às vezes envolvendo milhões de reais por um só processo.
Leonardo Laporta e João Henrique Chiminazzo são dois dos principais nomes que estão na luta por centenas de jogadores, trabalhando em escritórios diferentes. Recentemente, o zagueiro ex-Corinthians Paulo André, agora na China, ganhou destaque na imprensa quando surgiu a notícia de sua ação contra o ex-time. Entre as suas reivindicações, o direito de arena.
A lista de pleiteantes, no entanto, é enorme: Chicão, Zé Love, Fumagalli, Amaral, Marcelo Mattos, Alex Dias, Maldonado, Souza, Rafael Marques, Fahel, Leandro Castan são apenas alguns que estão na Justiça. Os valores das ações podem passar de R$ 130 milhões.
Mas, afinal, o que é isso, como surgiu isso e o que eles estão processando?
É preciso voltar um pouco no tempo para explicar como tudo surgiu. Pelo menos desde os anos 1970, os clubes tinham por lei a obrigação de partilhar com os atletas parte do que recebiam com receitas de televisão, em razão de um artigo contido na antiga Lei de Direitos Autorais. A justificativa é bem simples: se o time recebe dinheiro por aparecer na TV, o elenco também tem algum direito sobre esse recurso.
Mas foi apenas em 1993, que isso apareceu em uma lei diretamente relacionada ao futebol, a Lei Zico. A partir dela, se tornou obrigatória a distribuição de 20% do montante com o grupo que entrava em campo. Havia, no entanto, uma ressalva: “salve convenção em contrário”. O suficiente para que nenhum centavo fosse depositado na conta dos jogadores.
Foi exatamente por esse motivo que em 1997 sindicatos de quatro estados (MG, RJ, SP e RS) se reuniram para brigar por essa grana que nunca aparecia. Eles entraram com uma ação na Justiça contra a Globo, a CBF, todos os clubes e federações, exigindo que o assunto fosse enfim resolvido. No ano seguinte, no entanto, antes mesmo de uma decisão final sobre o processo, veio a Lei Pelé.
A nova medida, em relação à Lei Zico, mantinha praticamente o mesmo texto, com a mesma ressalva, mas trazia uma novidade: “mínimo de 20%”. O que parece não ter diferença, mas segundo os advogados foi uma mudança importante, afinal, mesmo que houvesse uma convenção em contrário, ela não poderia ser para um montante menor do que os 20%.
Na prática, no entanto, os times continuaram sem pagar.
Mas em 2000, tudo mudou. Enfim, a Justiça tomou uma decisão sobre a ação dos sindicatos e decidiu bloquear todo o dinheiro da televisão, ameaçando até mesmo acabar com as transmissões. E aí veio o famoso acordo, o que dá margem para todas as brigas na Justiça atualmente. Sem receber os tais 20%, as entidades representativas da classe dos atletas acordaram com os clubes que eles então começassem a pagar 5%, sem chance para desculpas ou escapatórias.
E aí vem a pergunta: mas por que afinal um sindicato aceitou diminuir um benefício da própria classe que representa em vez de brigar pelos direitos integrais?
A explicação oficial pode convencer: a legislação não prevê que os 20% assegurados aos atletas sejam aplicados sobre o valor total dos contratos firmados com as emissoras de TV, mas sim sobre o valor de apenas uma parte deles, especificamente a parte que remunera a comercialização do direito de arena.
Os clubes defendiam que dentro do montante de dinheiro que recebiam da TV, por força dos contratos assinados, estavam sendo remunerados cinco direitos diferentes, não apenas um. O direito de usar o nome, o apelido e o escudo do time em chamadas, o direito de colocar placas de publicidade na beira do campo, o de produzir publicidade virtual (computação gráfica) em cima das imagens dos jogos, o de produzir jogos virtuais, como o “Cartola FC” e, por fim, o direito de arena.
Portanto, o direito de arena correspondia a apenas um direito entre os cinco remunerados (ou 20% de 100% do contrato). Logo, se a lei assegurava aos atletas 20% de um direito que equivale a 20% do valor total do contrato, os atletas teriam direito a apenas 4% do valor total pago pela televisão (por todos os direitos por ela adquiridos). Neste sentido, o acordo elevou de 4% para 5% do valor total dos contratos, sendo considerado como benefíco pelos sindicatos dos atletas.
“O acordo foi considerado melhor e não pior. A gente brigou muito para chegar nesse número. Hoje, muitos jogadores querem receber só nas férias, como um décimo quarto salário”, afirmou Reinaldo Martorelli, presidente do sindicato de São Paulo.
Em 2011, uma reforma na Lei Pelé, enfim, acertou as arestas. Pela nova medida, “salve convenção coletiva”, os clubes são obrigados a pagar os 5%, oficializando o acordo feito lá trás.
Mas muita coisa ficou no meio do caminho.
“A gente viu ali que existia uma brecha entre a lei e o acordo. Os clubes ficaram muito tempo sem pagar e entre 2000 e 2011, o acordo e a lei definitiva, pagavam apenas os 5%. A gente começou a ir atrás dessa diferença de 15%. A mudança para ‘convenção coletiva’ faz toda a diferença nessa luta. Um dos nossos argumentos para estar na Justiça é de que o acordo foi feito à revelia, sem conhecimento dos jogadores. Agora, a lei só permite que os 5% sejam alterados, se houver um acordo coletivo”, explica Leonardo Laporta, que tem mais de 300 ações.
“Todos os jogadores agora conhecem essa lei. Tudo que aconteceu até 2011, é possível Então, hoje eu tenho pelo menos um cliente em cada clube e no boca a boca eles vão avisando os outros para me procurarem. Eles sabem que é uma coisa que eles podem brigar e venho ganhando em 90% dos casos. O trabalho tem mostrado que vale a pena. A diferença varia bastante, são contas trabalhosas, mas os jogadores sempre saem ganhando”, afirma João Henrique Chiminazzo.
Do lado dos clubes, no entanto, há ressalvas quanto ao trabalho de alguns advogados.
“Acontece muitas vezes de os advogados criarem uma falsa expectativa para os jogadores, de que todos eles vão receber valores milionários, quando não é bem assim. Há casos que o atleta já recebeu mais com os 5% do acordo (aplicados sobre o valor total do contrato), do que receberia após a discriminação apenas do valor do direito de arena, separando-o dos demais direitos remunerados no mesmo contrato, para a posterior apuração da diferença de 15%. Então, nem sempre os valores sugeridos por tais advogados são os valores finais o que pode gerar uma decepção futura, na fase judicial de apuração de valores”, diz Fernando Abrão, advogado do Corinthians.
“Claro que essa situação é ruim para os clubes. Temos saído derrotados em alguns casos, sim. É possível que os clubes não estejam conseguindo demonstrar de forma clara em suas defesas os benefícios obtidos através do acordo feito com os sindicatos. Mesmo assim, tenho dúvida se os prejuízos serão tão grandes, caso a compensação dos 5% pagos também sobre outros direitos que não o direito de arena seja permitida nos tribunais. Além do mais, esse assunto ainda não possui entendimento uniformizado na Justiça do Trabalho, com diversas decisões favoráveis aos clubes.”, completou.
A compensação a que se refere o advogado tem a ver com o entendimento do juiz sobre o que já foi pago. Se um jogador recebeu a sua parte dos 5% (sobre todo o valor do contrato) durante o período que defendeu o clube e consegue ganhar na Justiça a briga pelos 15% (apenas sobre o direito de arena, individualmente considerado), os clubes defendem que seja feita a discriminação do valor do direito de arena, separando-o do valor dos demais direitos pagos no mesmo contrato, para a posterior apuração desta diferença, abatendo-se o que foi pago por força do acordo judicial feito com o sindicato dos atletas. Mas, do lado dos atletas, há a exigência de que seja pago o valor integral da vitória, já que não fora cumprida a lei naquele momento.
O cálculo
Para saber quanto um jogador deve receber, a conta é complexa.
5% da cota de televisão do clube dividido pelo número de partidas disputadas pelo jogador no ano dividido por 14 (número de atletas que entram em campo) é igual ao valor de direito de arena.
Fonte: ESPN