É muito comum ouvirmos que tal time “já está com a cara do técnico” ou que tal time “já tem o dedo do técnico”. Mas, na boa, não são muitos os técnicos que conseguem dar sua cara a um time de futebol. No Brasil, isso é algo ainda mais incomum. E eu acho muito nobre um treinador ter uma grande marca, um estilo bem definido, um gosto em especial, uma assinatura. Comparo esses técnicos diferenciados com artistas. Você pode gostar ou não de Picasso, Da Vinci ou Van Gogh, mas é inegável que algo une o trabalhos de cada um desses caras, há um traço comum nas obras de cada um deles, há uma cara para seus quadros, algo que os especialistas no assunto aprendem, estudam e tomam como referências. O mesmo pode ser dito de cineastas. Você pode gostar ou não de Tarantino, Tim Burton ou Woody Allen, mas é fácil perceber a linha de trabalho deles, as preferências, os olhares, os tons, os estilos muito claros de cada um deles. Isso acontece também com alguns dos maiores treinadores de futebol ao longo dos tempos. E, normalmente, esses são os maiores mesmo.
Vejamos o caloroso duelo entre Arsène Wenger e José Mourinho no domingo. Pela 12ª vez, o refinado treinador francês do Arsenal enfrentou o marrento português intitulado Special One e mais uma vez não conseguiu dobrar o competitivo técnico do Chelsea. Essa freguesia certamente se explica muito pelos objetivos e pelos estilos dos dois comandantes. Um prefere a classe, a leveza, a arte, o jogo limpo. O outro não abre mão de um forte sistema defensivo, de jogadores mais viris, de muita aplicação tática e de uma filosofia em que o resultado é o mais importante. Para Mourinho, não importam muito os meios, os fins é que contam mesmo. Para Wenger, os meios são tão ou mais importantes que os fins. Por isso que José Mourinho já chamou Wenger de loser, algo que já foi dito de certa forma no Brasil por Muricy Ramalho muitas vezes: “Tem técnico que está há muitos anos na Europa e não ganha nada”, costuma dizer o técnico do São Paulo, que foi discípulo de Telê, mas também um admirador de Minelli (Telê colocava muito de sua cara nos seus times, num estilo mais Wenger, e Minelli fazia muito isso pela tática, é mais Mourinho).
Há quem ame e há quem odeie Mourinho. E há quem valorize e há que ridicularize Wenger. Eu gosto dos dois, admiro os dois. Ambos são competentes, inteligentes e dão grande contribuição para o futebol mundial, notadamente para a Premier League e sua cara tão globalizada dos dias atuais. Os dois não mudam a essência de suas ideias a cada temporada, muito ao contrário. Não largam suas convicções e são bem-sucedidos e queridos onde estão. Podemos citar outros exemplos de técnicos que deixam sua marca em suas equipes de forma muito intensa. Veja o que o futebol do Chile virou após a passagem de Marcelo Bielsa. Veja o que é o Newell’s Old Boys depois da passagem de Bielsa, veja o legado dele no país seja na seleção seja nos clubes. E veja o que Bielsa está fazendo em Marselha agora.
A loucura de Bielsa, após relativo sucesso no Athletic Bilbao, chegou à França, e o Olympique rapidamente conseguiu uma série de vitória que ameaçam o reinado endinheirado do Paris Saint-Germain. Meio gênio e inteiro Loco, Bielsa já deixou sua marca para sempre no Newell’s Ols Boys, campeão argentino de 1991 e vice da Libertadores em 1992. Tata Martino foi apenas um de seus discípulos que deram sequência ao seu estilo ousado e despojado de jogo no clube de Rosario, que respira um 4-3-3 com bom toque de bola ano após ano. Bielsa não é perfeito, é um viciado em vídeos e estatísticas. Ele vê de forma muito peculiar um jogo que nós, mortais, assistimos de maneira simplória. Bielsa é uma espécie de Dom Quixote de La Mancha, um cara alucinado e obsessivo que vê monstros que não existem e que talvez tenha em si mesmo seu maior inimigo. É diferenciado, sem dúvida, e assim são seus times. Sempre torci para ele assumir algum grande clube brasileiro ou mesmo a Seleção Brasileira, só para ver no que ia dar. Poucos o compreendem, talvez nem ele mesmo. Mas ele é uma boa pedia contra a mesmice do nosso futebol.
Felipão deu sim sua cara ao Grêmio, embora, em entrevista recente sobre a série invicta do seu time e o sistema defensivo poderoso do Tricolor gaúcho, Luiz Felipe Scolari tenha dito que aquela era a cara do Grêmio, aquele era o estilo do clube: muita marcação, aplicação tática, bom posicionamento etc. Felipão e Grêmio se misturam, é um time e um técnico que se fundem. Não havia outro clube mais perfeito para Scolari neste pós-Copa tão traumático para ele. Ele está fazendo bem ao Grêmio e vice-versa. A identidade de Felipão está tão escancarada no time que até as reclamações abusivas contra a arbitragem e a pressão sobre os adversários viraram arma (às vezes contra e às vezes a favor) de seu time. A torcida joga junto, vibra junto, protesta junto, chora junto, contesta junto com Felipão, esteja ele certo ou não, seja a causa justa ou não. Vanderlei Luxemburgo é muito mais a cara do Flamengo do que a do Grêmio, Muricy é muito mais a cara do São Paulo do que a do Palmeiras. E por aí vai. Há técnicos com caras de seus times pela história, por serviços prestados, por serem na verdade torcedores desses clubes. Isso vale hoje para Felipão, Luxa e Muricy, mas esses três também têm suas marcas como treinadores de qualquer equipe.: Luxa é mais romântico, mais brasileiro, mais solto, mais malandro, mais time talentoso, mais dois armadores, mais toque de bola. Só que nos últimos anos, com times mais modestos e menos técnicos, coube a Luxa ser mais precavido, ser menos arrojado, menos vitorioso. Felipão é mais truculento, mais físico, mais viril, mais gaúcho, mais Paulo Nunes e Jardel, mais marcação, mais mata-mata, mais tosco, mais volantes, mais Dinho. Muricy é um híbrido de Luxa e Felipão que, neste momento, está mais para o romântico Luxa, pois conta com vários talentos do meio pra frente no São Paulo e não dispõe dos melhores defensores do universo na atualidade. Está mais solto, em especial depois de ter levado aquele 4 a 0 do Barcelona de Guardiola. E há técnico hoje que dê mais cara a seu time do que Guardiola? Esse virou sinônimo de posse de bola, troca incessante de passes, qualidade técnica, marcação adiantada, defesa adiantada, tudo que ele pegou do Cruyff, que pegou do Rinus Michels… Esses caras que deixaram sua marca eterna no Barcelona e na Holanda pautam centenas, milhares de treinadores mundo afora, mas poucos têm a coragem de colocar sua cara num time de futebol quando ganham uma chance. Há casos esporádicos, como o Carrossel Caipira de Vadão no Mogi Mirim ou mesmo a recente sensação Audax do Fernando Diniz. Quem ousa aqui ou tenta sair da mesmice ganha logo o apelido de Professor Pardal, pouco é compreendido e acaba ficando quase sempre careta, quadrado. Vagner Mancini gosta de times rápidos e abusados, isso mesmo quando comanda equipes modestas (quase sempre dirige equipes modestas), tem seu mérito. Cuca, por sua vez, é um grande formador de times, às vezes peca na administração dos times que forma, notadamente nas horas mais decisivas.
A ideia deste post não é julgar quem é bom ou mau técnico, quem é melhor ou pior. O que defendo é que o futebol brasileiro dê mais espaço ou forme mais esse técnico capaz de dar uma cara a seu time. Pode ser um cara simples e de boné, como Tony Pulis, treinador que hoje é símbolo do futebol rústico na Inglaterra e que consegue sucesso à frente de times medíocres na badalada e milionária Premier League. Pode ser um Milton Buzzeto, com sua retranca, ou um Caetano de Domênico, com sua cerradinha, caras que não têm o reconhecimento de um Helenio Herrera, mestre do catenaccio, mas que deixaram sua assinatura no futebol nacional. É um prazer enorme para um artista ter sua obra facilmente reconhecida e destacada. O mesmo, creio, deve valer para os técnicos, sejam esses ofensivos, defensivos, malucos ou conservadores. Viva a diversidade e a capacidade de influenciar uma equipe até a espinha.
Fonte: Blog do Rodrigo Bueno