A Copa do Mundo no Brasil, principalmente a maior derrota da história da seleção anfitriã e maior campeã do torneio, despertou reflexões sobre o futebol jogado em nossos campos – ainda que a base do escrete canarinho seja formada por atletas que atuam no exterior.
Assistindo aos jogos entre os principais times da Europa, ou mesmo a Eurocopa, muitas vezes fica a impressão de que são esportes diferentes. Além da questão econômica que arrasta os grandes craques para o Velho Continente, justifica-se esse abismo pela qualidade dos gramados e, principalmente, por conta do clima e das distâncias percorridas nas viagens dentro de um país com dimensões continentais.
No entanto, o título da Alemanha que rodou o país, enfrentou frio em Porto Alegre contra a Argélia e quase derreteu em Salvador, Fortaleza e no Maracanã tórrido nas oitavas diante da França, deixou claro que, apesar dos obstáculos, é possível jogar aqui em alto nível, com compactação e intensidade. Boa parte das novas arenas também ajuda com grama baixa e úmida, que proporciona jogo mais rápido.
Então o que falta para o futebol jogado no país se adequar à realidade dos grandes centros?
Cláudio Pavanelli, fisiologista do Flamengo, destaca as mudanças na essência do jogo que influenciam o aspecto físico:
“A média de distância percorrida por jogo caiu, tomando como referência a Copa do Mundo. Mas aumentou em volume e intensidade, por conta da movimentação em bloco das equipes num espaço de 30 a 40 metros, que exige piques curtos, mas constantes. Isso provoca uma alteração na preparação e na manutenção do condicionamento”.
A primeira missão dos profissionais que condicionam o atleta no Brasil é minimizar os desgastes.
“Há estresse da viagem, ambiental – principalmente pela umidade em algumas regiões – e até por conta da alimentação inadequada do atleta quando está em casa”, explica Pavanelli.
O calendário também é apontado como vilão pelo desgaste acumulado.
“São muitos jogos, não é por acaso que o número de lesões no último trimestre do ano seja maior que nos nove meses anteriores e isso interfere na qualidade”, ressalta.
A logística é outro fator que muitas vezes compromete a recuperação:
“No meio da semana, por exemplo, a partida começa às dez e termina à meia noite. Ainda que o atleta saia logo do estádio, ele chega no hotel e, com a adrenalina da disputa, só vai dormir lá pelas três, quatro da manhã para acordar às oito e pegar o avião às nove”, detalha o fisiologista.
O que fazer para melhorar o desempenho nesse cenário? Para Pavanelli, é possível subir o nível do jogo em campo com uma integração da equipe de profissionais:
“Todos precisam trabalhar em conjunto, desde o treinador com a estratégia e a tática de jogo, passando por nós da preparação física até a nutricionista e o pessoal da logística, que marca passagens e hotéis.”
Para Ricardo Drubscky, treinador do Vitória e autor do livro “Universo Tático do Futebol – Escola Brasileira”, apesar de todas as dificuldades extra-campo, o maior atraso ainda é dentro das quatro linhas.
“Sim, há calor e o calendário apertado, mas ainda jogamos de uma maneira muito alongada, a nossa compactação tem que melhorar. Os jogadores precisam ser mais ágeis, técnicos e inteligentes taticamente. A grande maioria não sabe jogar o futebol moderno, não dá para se iludir ou varrer a sujeira para debaixo do tapete”, critica o técnico.
Drubscky observa o futebol no país jogado com alta intensidade, mas poucos movimentos coletivos das equipes:
“Esse esporte transcende o jogo individual e muitos aqui não compreendem. Os clubes ainda buscam jogadores que dirigentes e treinadores acham que podem resolver tudo sozinho e cada um se vira à sua maneira. Precisamos de conceitos de trabalho coletivo”.
Por fim, o treinador lamenta a ausência de um debate profundo sobre o futebol brasileiro depois da Copa do Mundo.
“Perdemos uma grande oportunidade de reflexão e discussão. É triste perceber que, na prática, nada mudou. É uma conjuntura penosa, o nosso jogo é muito mal tratado. Precisamos pensar em um novo modelo, desde a gestão sob todos os aspectos, passando pela regulamentação da própria profissão de técnico, que é responsabilizado por todos os problemas e muitas vezes não tem dois meses para mostrar trabalho, até chegar ao campo”, alerta Drubscky.
Visão do blog – É inegável que as peculiaridades do Brasil têm um peso na qualidade do jogo. Na Europa, a maioria das partidas é disputada com temperatura amena, grama impecável e os times ou seleções normalmente fazem viagens bem mais curtas.
Mas é possível evoluir. Os depoimentos de Pavanelli e Drubscky apontam o melhor conjunto de medidas para os clubes: inteligência, método e praticidade na preparação jogo a jogo. Equipes com setores mais próximos e bem coordenados coletivamente, correndo “certo” e se desgastando menos.
Os movimentos de alguns treinadores já neste início de ano sinalizam mais um passo adiante na atualização do nosso futebol. As atuações do Corinthians diante do Bayer Leverkusen e do Atlético Mineiro contra o Shakhtar Donetsk servem como um alento. Os melhores times na Copa SP com volantes de bom passe, atacantes móveis e jogo coletivo mais aprimorado, sem depender tantos das individualidades, mostram que os profissionais da base estão atentos.
A inércia da CBF e das Federações pode ser compensada no campo e as mudanças no jogo em si forçarem as transformações estruturais que o nosso futebol precisa. Um movimento de dentro para fora. Sim, o Brasil pode!
Fonte: Olho Tático