Há cenas que são capazes de sintetizar uma crise que, embora se manifeste mundo afora, aqui se apresenta com contornos bem brasileiros. No Fla-Flu de Volta Redonda, juiz e assistentes cercados, acuados, eram a imagem do pânico. Pareciam implorar por ajuda. Sandro Meira Ricci errara terrivelmente, sim. Mas ele e seus auxiliares eram símbolos dos personagens mais fragilizados do futebol atual.
Verdade que a confusão desatou quando Ricci, colecionador de atuações comprometedoras, rejeitou a marcação do bandeira, que acertara ao anular o gol tricolor. Mas tudo o que aconteceu a seguir é muito mais significativo do que discutir se, ao fim do tumulto, chegou-se a um desfecho justo ou injusto.
Não há, hoje, figuras mais inseguras num campo do que os árbitros. Em especial num futebol como o brasileiro, em que valores como respeito, compromisso com o espetáculo e boa educação perdem de goleada para a busca do resultado a qualquer preço, incluídos aí a pressão e os desaforos. Vinte e dois jogadores elegem a arbitragem como adversária e tentam vencê-la pela intimidação ou pela simulação. Cabe ao juiz fazer mais do que marcar o que vê. Precisa partir da premissa de que, por vezes, o que vê são cenas de ficção produzidas por dublês de atores, muitos deles canastrões. E, justiça se faça, nem sempre são só os atletas. No Fla-Flu, até médicos e preparadores tomaram parte na disputa da imposição pelo grito.
Com tantas variáveis, o juiz precisa tomar decisões em meio a um jogo cuja velocidade cresce exponencialmente. Mas o olho humano, este permanece sendo um olho humano. Ainda que possa, e deva, ser melhor treinado, preparado.
O árbitro, inacreditavelmente o único elemento do jogo que, ainda em 2016, não tem no futebol seu único sustento, conduz o jogo rezando para que nenhuma das dezenas de câmeras que cercam o campo desminta suas marcações. Tem a tecnologia como adversária. Convenhamos, é desleal.
Proliferam os árbitros à beira de um ataque de nervos, adeptos da ideia de que jogadores são mesmo inimigos. Aplicam cartões como se desferissem um golpe com a arma que lhes resta. Vingam-se através do amarelo e do vermelho. É verdade que não faltam árbitros tecnicamente fracos. Mas sobram também os inseguros, frágeis diante de cenário tão hostil. No Fla-Flu, a pressão os fez ir e vir na hora de decidir.
Hora do vídeo e do bom-senso
O futebol tem uma dinâmica única, sem ciclos predefinidos como o vôlei, em que uma gama bem maior de lances pode ser corrigida pelo vídeo sem alterar o fluxo do jogo. É natural o estudo cuidadoso para implantar a tecnologia, mas a verdade é que o futebol se atrasou, flerta com o anacronismo.
O futebol precisa mudar, e os árbitros precisam de ajuda: da tecnologia, da profissionalização, da preparação e da gestão da CBF. Ricci e os assistentes, através de suas expressões de medo, imploravam por auxílio em meio à confusão do Fla-Flu. E ele veio, ao que parece, da forma mais inaceitável. De tanto rejeitar ingressar no século XXI, o futebol entrou na zona cinzenta da falta de transparência, da ajuda disfarçada do vídeo que, se valer uma vez sim, outra não, desequilibra campeonatos. É quase um vale-tudo na luta do árbitro pela sobrevivência na selva que se tornou o campo. Um dano irreversível ao jogo, porque pior do que uma arbitragem ruim é não saber quem é, de fato, o árbitro.
Mas precisam mudar também os dirigentes, protagonistas de uma pressão que não termina com o jogo. A sexta-feira foi marcada por uma guerra interestadual de entrevistas coletivas e indignação seletiva, até de quem já viu seu clube se beneficiar da aparente influência disfarçada do vídeo. A rigor, não há propriamente indignação. Há, isto sim, a preparação do ambiente de pressão para a próxima rodada, para que seu clube seja o favorecido.
Rodeados por jogadores, técnicos, preparadores e médicos no Fla-Flu, Ricci e os assistentes claramente já sabiam que o gol de Henrique fora em impedimento. Restavam-lhes duas alternativas: ou morriam abraçados ao erro, ou reviam, outra vez, a decisão, quase que confessando um auxílio de vídeo que, hoje, ainda é ilegal. Àquela altura, não havia mais como o futebol sair ileso.
Nada será como antes
A vida e o mundo, ao menos da forma como este aprendiz de colunista aprendeu a conhecer, não existem mais. A aventura da paternidade redefiniu o sentido e o valor de todas as coisas, além de antecipar planos e férias. A coluna fará um intervalo de pouco mais de um mês. Seja bem-vindo, Dudu!
Fonte: O Globo