Que a paixão provoca cegueira é algo que sabemos desde os onze ou doze anos, quando começamos a sofrer por causa da menina mais bonita da turma no colégio ou da rua em que moramos.
A paixão pelo Flamengo, com a inevitável e eterna cegueira que ela traz, quase sempre chega antes disso. O engraçado é que a gente se acostuma, mas não aprende.
Já citei aqui no blog a reportagem publicada em 20 de maio de 2015, na edição digital da revista Exame, sobre a inédita reorganização financeira operada pelo clube e alguns resultados dentro de campo que os dirigentes projetam, por conta do equilíbrio orçamentário e da consequente disponibilidade para investir em bons jogadores. Escreve o jornalista Humberto Maia Júnior: “De 2017 a 2021, o Flamengo espera ganhar quatro campeonatos estaduais, cinco títulos nacionais e pelo menos uma Libertadores da América.”
Se me coubesse escolher, abriria mão dos quatro estaduais por mais uma Libertadores, e nem pediria troco. De qualquer modo, e mesmo desconfiando que os tais cinco títulos nacionais deixam a projeção um tanto exagerada, a expectativa é de que o rodo rubro-negro comece a passar a partir do ano que vem.
Assim, nossa campanha no Campeonato Brasileiro de 2016 – em que, independentemente da colocação final, tudo indica que o Flamengo irá fazer mais pontos do que fez na conquista de 2009 – pode ser encarada como um ensaio aberto do grande espetáculo que nos aguarda.
A ideia de que no futebol só importa o resultado é boa no atacado mas se perde no varejo, vale para o macro e fraqueja no micro, porque na maioria das vezes nos impede de perceber acertos nas derrotas e erros nas vitórias. Rejeitado pela cegueira, apaixonados que somos, o hábito da contextualização talvez seja necessário e válido. Embora, e que isto fique bem claro, contextualizar não tem a ver com garimpar desculpas ou tapar o sol com a peneira.
Em depoimento ao Museu do Futebol, instalado junto à entrada principal do Estádio do Pacaembu, o grandíssimo rubro-negro Ruy Castro elege a santa cabeçada de Rondinelli em 1978, e o título estadual por ela sacramentada, como o momento mais importante na trajetória do mais extraordinário dos nossos times. A explicação: para Ruy Castro, não fosse aquele gol e viéssemos a perder o campeonato, muito provavelmente o Flamengo teria mandado embora alguns dos caras que nos deram as maiores glórias da nossa história. Seria o segundo estadual seguido perdido para o Vasco e não vínhamos fazendo grandes coisas nos campeonatos brasileiros. Daí, para chegar alguém com o grito de “barcaça já” e a coisa pegar, era um pulo.
Por outro lado, e esta parece ser a nossa tarefa primordial, agora que os quatro jogos consecutivos sem vitória abalaram convicções e emagreceram esperanças, é preciso começar, imediatamente, a pensar no ano que vem. E, sobretudo, definir o que podemos e o que queremos.
Já que Bandeira de Mello garante que a partir de 2017 o vento vai virar a nosso favor, é obrigatório que o padrão de exigência seja muito mais alto do que o atual. É inadmissível ter um ataque em que sempre achamos que o melhor é quem está fora. Se joga Gabriel, devia ser Cirino. Se entra Cirino, melhor que fosse Fernandinho. Se vamos de Fernandinho, era pra ter sido Emerson. Não costumo endossar as ditas barcaças, a não ser em casos de desastres absolutos, porque elas significam começar do zero e isso raramente é bom. Porém, se temos tamanho grau de insatisfação em relação aos companheiros de frente do Guerrero, há que se trocá-los.
Esse ano tivemos, ainda, provas concretas e cabais de como reforços criteriosamente escolhidos fazem bem ao time, e o maior exemplo disso é o Diego. Quem acompanha meu espaço aqui no RP&A sabe que sou uma anta nas coisas da matemática, mas uma calculadorazinha dessas bem vagabundas me ajudou a concluir que, sem Diego, o Flamengo ficou com 57% dos pontos que disputou. Com Diego, nosso aproveitamento salta para 69% – o que, nas treze edições do Brasileiro sob o sistema dos pontos corridos, apenas quatro campeões alcançaram. Diego foi o principal responsável por tirar o Flamengo da incômoda condição de coadjuvante do campeonato para elevá-lo ao status de protagonista, e chega a dar dó vê-lo dominar a bola com categoria, partir em velocidade para o ataque, olhar para um lado e enxergar o Gabriel, olhar para o outro e perceber o Fernandinho. Cansa.
Se o que desejamos para 2017 é ganhar do Sapucaia, do Miracema, do valoroso esquadrão da terra da Nivinha e chegar à semifinal do moribundo Carioca, o que está aí basta. No entanto, se nosso equilíbrio financeiro nos permitirá arregimentar um elenco de responsa, com catorze ou quinze caras capazes de ser titulares nos melhores times do continente, aí o sarrafo tem que subir. E muito.
Acho o fim da picada o Flamengo ter um jogador feito o Gabriel, que se livra da bola e torce para que dê certo, além de se atirar farsescamente ao chão na maioria dos lances que disputa. Por mais bolas que tenha roubado no jogo de ontem, Márcio Araújo é o avesso do avesso do avesso do avesso do que entendemos como um moderno meio-campista. Não suporto jogadores de futebol que se escondem das responsabilidades e ficam apontando pra lá e pra cá; quem sabe jogar não indica o que é pra fazer, pede a bola e faz. Márcio Araújo é um profissional honrado, mas não tem como fazer parte de um time que pretende, em cinco anos, ganhar cinco títulos nacionais. Façam as homenagens que julgarem justas pelo indiscutível empenho, preparem uma love letter para ele e mandem-no para o CRB, o Figueirense ou o Sport, clubes à altura da sua dedicada mediocridade.
Não posso encerrar o texto sem falar do Zé Ricardo. É inegável que ele deu padrão de jogo ao time – que até então mais se assemelhava ao incrível exército de Brancaleone –, mas será que esse padrão não se transformou em amarras, em antolhos, em algo a que nós mesmos nos aprisionamos e do qual não conseguimos fugir? Li, recentemente, uma entrevista em que o nosso técnico elogiava Mancuello, ao mesmo tempo em que avaliava estar o argentino abaixo de duas outras opções do elenco (Éverton e Fernandinho, suponho) para executar as exaustivas funções de sobe-e-desce pelo lado esquerdo.
Ora, pois, claro que sim, mas ao que eu saiba Mancuello não foi contratado para isso. E mais: será que essa é a única maneira de jogar? Não considero Mancuello nada do outro mundo, mas acredito que, num time que do meio pra frente conta com Gabriel e Fernandinho, ele tem vaga sim senhor. Como, não sei, mas que se treine, que se experimente, que se arrume um jeito. Para isso servem os treinadores de futebol, é isso o que fazem os bons treinadores de futebol. Reconheço que a lembrança é uma covardia retórica, mas desde que vi, na seleção brasileira de 1970, Rivellino ser escalado na ponta-esquerda, Piazza na quarta-zaga e Tostão de centroavante, aprendi que os grandes times começam a ser montados a partir da decisão de mandar a campo os melhores. E que o esquema tático deve ser desenhado de modo a aproveitá-los.
O título desse post é tirado de uma canção de um cabra arretado de bom – o compositor, cantor, guitarrista e rabequeiro pernambucano Siba –, e me pareceu adequado ao caminho que o Flamengo vem percorrendo com disciplina e competência.
Os avanços e o dinamismo do mundo causam uma certa sensação de angústia. Quanto mais evoluímos, mais fortes as cobranças. Nós, flamenguistas, agimos assim, e é muito bom que assim seja.
2016 deixou claro que temos uma impressionante capacidade de incomodar, mesmo quando somos mais ou menos. A partir de 2017, quando seremos só mais, ninguém vai segurar. Basta fazer direito.
Se duvidam, perguntem ao prefeito eleito em Belo Horizonte.
Jorge Murtinho
Fonte: República Paz & Amor
O melhor texto escrito como uma avaliação final da campanha do time, e sem nenhuma repercussão por aqui.