Quando acaba a Copa do Mundo, muitos hereges que exigem do futebol uma satisfação entre circense e fetichista lamentam o retorno das contendas nacionais. Pois o embate entre Grêmio e Flamengo, no primeiro jogo pelas quartas da Copa do Brasil, semanas após o fim do Mundial da Rússia, serviu como uma espécie de afago para essas almas que confidenciam para o travesseiro a abstinência de um futebol iluminado.
Em todos os aspectos, rubro-negros e gremistas desempenharam um espetáculo que comoveu tanto os estetas quanto nós, operários do futebol, que já nos damos por contente se pelo menos metade dos jogades em campo consegue caminhar direito. Em termos estratégicos, houve uma alternância maravilhosa de possibilidades. No primeiro tempo, por exemplo, com o Grêmio adiantou sua marcação até o limite da sanidade, com o Flamengo se vendo estreito para vencer aquele enxame tricolor que ocupava seu campo.
A trama renascentista que culminou no gol de Luan, homem universal e principal artilheiro da Arena, fez com que a esquadra rubro-negra tivesse uma súbita crise de labirintite. Mas, se é verdade que ao fim da primeira etapa o Grêmio poderia ter ampliado, também é fato que no segundo tempo o Flamengo causou tamanho atrito no campo gremista que chegou a arrefecer o frio porto-alegrense. É provável que Renato tenha tentado esperar para uma estocada contundente em um contragolpe, mas os contragolpes, assim como os pedidos de desculpas, muitas vezes não vêm. Sem o petiço encantado Éverton e com Jael e Marinho fica difícil derreter a geada do campo alheio.
Prova de quão promissor é este time de Maurício Barbieri é que durante a dourada época portaluppiana nenhuma equipe agigantou-se na Arena como o Flamengo fez nos últimos quinze minutos. E aí entra outro aspecto que não compreende apenas a qualidade do jogo em si, mas acrescenta temperos épicos no imenso mapa de calor que reveste nossos corações: com Paquetá e Vitinho, que fazia sua estreia, o time carioca exigia que a defesa do Grêmio revivesse suas noites mais memoráveis: Kannemann e Geromel são duas forças complementares da natureza.
Tanto o Rubro-Negro moeu, torceu e retorceu os tricolores em seu próprio campo, muitas vezes debaixo dos metafísicos bigodes de Marcelo Grohe, que no último lance do jogo, quando a Arena já ameaçava um suspiro, numa jogada veloz e surpreendentemente lógica para aquele crítico momento de gritedo e correria, eis que surge, como uma navalha cortando o ar gelado, o intrépido Lincoln, com a urgência de seus 17 anos, para arrancar a igualdade.
Poderíamos ter mais meia hora de alto nível futebolístico, de tensão, de pânico e esperança, e avançaríamos em êxtase para o turno madrugador sem que as pálpebras fraquejassem. Que o jogo tenha encerrado logo após o gol flamenguista é justamente para que impere a suspeita de que não acabou de fato. Ao contrário da Copa do Mundo, que nos vende terrenos em distâncias inconcebíveis, as quartas-feiras do futebol brasileiro estão sempre com a porta destrancada.
Reprodução: Blog Meia Encarnada | Globoesporte.com
Parabéns! Excelente texto…