Estudo que nega necessidade de reforço reacende polêmica e consórcio deve cobrar R$ 200 milhões na Justiça: “Aquele estádio ia cair de qualquer jeito”, diz Odebrecht
Em 2017 o estádio Olímpico João Havelange completa 10 anos de vida cercado de polêmicas. Construído para o Pan-Americano de 2007, o Engenhão, que custou R$ 380 milhões, teve reforço de estrutura calculado em R$ 200 milhões após interdição em março de 2013. O caso ainda gera polêmica e vai render anos de disputa judicial milionária. As empresas não confirmam os valores, mas a ação de cobrança do Consórcio Engenhão – formado pela Odebrecht e pela OAS – ao primeiro consórcio RDR – Racional, Delta e Recoma – está na ordem dos R$ 200 milhões gastos pelo segundo consórcio – custo estimado da obra que inseriu mais 1500 toneladas no estádio. O primeiro consórcio foi para a briga e nega, com base em estudo premiado no fim do ano passado, que houvesse necessidade de obra no estádio.
A Odebrecht, que responde pelo Consórcio Engenhão, diz que o valor da ação de cobrança “ainda depende de levantamento de todos os gastos realizados, o que será objeto de perícia na ação de cobrança contra o Consórcio RDR”. Em disputa, um ressarcimento de milhões de reais e um verdadeira batalha de versões, das técnicas passando pelas acadêmicas, com direito a troca de farpas e até pedido da cassação de diploma de engenharia.
O primeiro consórcio, que deixou a obra em dezembro de 2006 e também move ação contra a prefeitura (valor estimado acima de R$ 50 milhões), saiu do canteiro de obras com apenas um arco concluído. O estudo durou nove meses e concluiu que as “deformações já visiveís” alegadas pela comissão nomeada pela prefeitura do Rio, após relatório alemão condenar o teto do estádio, vieram da montagem do Engenhão. Ou seja, um problema do segundo consórcio, não do projeto.
– Como a matéria é muito complexa, não quisemos no momento da interdição simplesmente sair negando. Quisemos ter certeza de que o projeto estava impecável, que não havia erro de premissa. Contratamos time de profissionais para que fizessem toda checagem, conferência, premissas de cálculo, túnel de vento, auditoria técnica, tudo! A comissão da prefeitura validou a decisão de interditar em 20 dias, nosso trabalho levou quase um ano. E felizmente chegamos à conclusão que todas nossas premissas estavam corretas. A estrutura não tinha sinal de deslocamento, estalo, nada. Diga-se de passagem, sem qualquer manutenção. Estádio em cidade de beira mar, nem clube (Botafogo) nem prefeitura fizeram manutenção. Apesar de ter sido abandonado, o estádio estava absolutamente intacto, sem sintoma de colapso ou risco de cair – afirma Marco Santoro, vice-presidente da Racional, que fala em nome do Consórcio RDR.
Material “vagabundo”. Primeiro Consórcio rebate
Do outro lado, a Odebrecht e a OAS colocam em xeque até mesmo o material utilizado para a construção do estádio e dizem que houve uso de material “vagabundo” na obra. Daí os gastos ainda maiores para o reforço, após a intervenção no teto. O Consórcio Engenhão citou a necessidade de reforçar 248 soldas na estrutura do estádio.
– Era aço vagabundo, sem compromisso técnico. Tiramos tudo. Aquele estádio ia cair de qualquer jeito, por razão ou outra – afirma o diretor da Odebrecht Sancho Augusto Montadon, responsável da empresa nas obras do Engenhão.
Boa parte do material da obra veio da Gerdau, da Cosipa e da Usiminas, todas empresas brasileiras. O ataque da Odebrecht ganha resposta do vice-presidente da Racional.
– Isso não tem nenhum fundamento. O material seguiu o especificado em projeto, com controle de laboratório – diz Santoro.
A interdição do Engenhão veio à tona em março de 2013, com laudo da empresa alemã SBP (Schlaich Begerman und Partner), que se baseava no ensaio de túnel de vento – nada mais do que testes em laboratórios especializados que simulam pressão do vento, com ventiladores em cima da maquete do estádio – e apontava em cálculos riscos de ruína do teto com ventos acima de 63 km/h. Assistente técnico da Racional no processo judicial, o engenheiro civil Gilberto Adib Curi, especialista em estruturas e patologia nas construções, coordenou o estudo que visa desmontar a necessidade de interdição e reforço. Ele diz que todo o trabalho dos alemães partiu, simplesmente, de premissas erradas. Curi conta que teve quatro palestras canceladas de véspera no fim do ano passado.
– Diziam que o tema (Engenhão) era muito polêmico – relata Curi.
Numa das palestras que saiu, na Sociedade dos Engenheiros e Arquitetos do Rio de Janeiro, em dezembro do ano passado, Curi afirmou que não houve erro de cálculo e nem de projeto. Após análise teórica e de campo de cinco profissionais envolvidos no estudo – entre eles Flavio D´Alambert, projetista do teto do Engenhão -, a conclusão do estudo premiado em 2015 na Cobreap (Congresso Brasileiro de Engenharia de Avaliações e Perícias) – é de que “as considerações (do laudo da SBP e da comissão da prefeitura) estão tecnicamente equivocadas.”
– A Wacker (laboratório alemão que fez o estudo do túnel de vento) apresentou valores de até 1000 toneladas a maior sobre a estrutura da cobertura em comparação ao feito pela empresa canadense (RWDI). É muita carga – diz antes de explicar a diferença nos dois estudos. – Não consideraram a direcionalidade do vento. O que é isso: quando se faz essa medição, pega-se 1/4 do estádio e taca vento ali para medir. “Ah, se o vento bater em outra direção?”. Tudo bem, gira a maquete, coloca a carga do vento lá. Eles (alemães) consideraram a carga máxima em todos lados ao mesmo tempo. A única forma de se considerar isso, que foi o que o alemão fez, é se bater o vento, e tem que ser o vento centenário, aquele de mais de 100 km/h, aí eu estoco esse vento. Passa 100 anos, desestoco o vento e faço os dois ventos baterem em direções diferentes. “E se daqui a 100 anos o vento bater na mesma direção?” Não desestoca. Espera mais 100 anos para soltar de novo. Aí realmente não há arco que aguente – ironiza.
“Que interesse a Odebrecht teria nisso?”
O deboche de Curi tem a ver com o laudo dos alemães. A SBP dizia no relatório que ventos acima de 63 km/h, não tão incomuns no Rio de Janeiro – aconteceram cinco vezes nos últimos sete anos -, colocariam a estrutura do teto do Engenhão em risco. “Um vento de mais de 63 km/h poderia levar a estrutura à ruína”, dizia à época da interdição Marcos Vidigal, representante do Consórcio Engenhão. Montadon, da Odebrecht, lembra que o relatório alemão dizia, na verdade, que a 63 km/h ainda havia coeficiente de segurança para o estádio funcionar.
– Mal comparando, se tenho R$ 100 mil para gastar, você não pode gastar R$ 100 mil. Tem que ter contingência para alguma necessidade, um custo de hospital, algo de urgência. O que a SBP disse é que até 63 km/h está seguro, mas acima disso não se tem mais segurança. Como vamos dormir sossegados com vento acima de 63 km/h? – questiona o executivo da Odebrecht, que se pergunta o motivo do Consórcio RDR aparecer agora. – O problema de projeto é claríssimo. Ficamos quatro anos doidos para que aparecesse alguém para explicar, nem o projetista (D´Alambert) nem o verificador (a portuguesa Tal Projecto) apareceram. Que interesse teria a Odebrecht de fazer isso? Depois de tudo que fizemos, que está tudo montado, o cara diz que estava seguro, que estava mal montado e diz que se não caiu está tudo bem? Mas se o avião caiu não adianta ver os destroços para falar qual problema havia.
O diretor da Odebrecht rebate com veemência, com direito a alfinetadas, o primeiro consórcio e o estudo coordenado por Gilberto Curi. Ele disse que a Odebrecht e a OAS, apesar do curto espaço de tempo, fizeram a montagem do estádio em tempo recorde como “qualquer consórcio competente faria”.
– (O estudo) é a única forma que a Racional poderia se isentar da responsabilidade, para sair dessa. Ela ia falar o quê? O erro de projeto é incontestável – diz o diretor da Odebrecht, afirmando que a espessura menor do arco, em comparação ao projeto do estádio do Benfica, que inspirou o Engenhão, também fez diferença.
Alemães sugeriram construir outro estádio
D’Alambert, da Alfa Engenharia, contesta. Ele lembra que Tiago Abecassis, o verificador e consultor da obra do estádio olímpico do Rio, nunca falou em erro de projeto. O GloboEsporte.com teve acesso a uma carta de Abecassis à SBP, em que o engenheiro português contestava os resultados analíticos dos alemães, alertando para as diferenças entre as convenções utilizadas pela SBP, em desacordo com a norma brasileira.
– É curiosa esta afirmação da Odebrecht, pois se o Tiago trabalhou no projeto do Benfica ele poderia ter notado qualquer erro e teria avisado. O projeto foi auditado por outros profissionais, como Ronaldo Batista (da Coppe-URFJ) e nenhum detectou problemas. Na verdade nunca surgiu nenhuma patologia na estrutura. Se ela estava tão ruim assim por que nem a tinta trincou? – disse D’Alambert.
Um dos especialistas em construções do tipo, o engenheiro Bruno Contarini, de 82 anos, participou de uma das reformas do Maracanã e também fez parte do projeto de concreto do Engenhão. Ele criticou duramente os argumentos de Nelson Szilard, da NSG Engenharia, que pertencia à comissão nomeada pela prefeitura e depois substituiu a SBP na obra do Engenhão.
– Não gostei desde o início desta história. Assisti a uma palestra do Szilard e tenho impressão que eles criaram tempestade em copo d´água à toa. Não vejo que ele tenha razão. Ele fala em nível de segurança 0,45 da construção, o que é suficiente. A estrutura está em pé, não teve reforço em um ano e meio. Só se desaprendi engenharia – diz Contarini.
Curi, que divide bancada na faculdade de engenharia da UFF com Szilard, também questiona o colega e lembra que após validar o estudo, a NSG de Szilard entrou para executar a obra. A Odebrecht diz que escolheu Szilard pois já estava familiarizado com o estádio.
– Se você tem um estádio que está para cair, você não coloca uma escora nele? Nada? Bate vento de mais de 100 km/h e não voa uma telha? Um ano e meio para mexer no estádio? Interessante né – ironiza Curi.
A Odebrecht e Nelson Szilard explicam que a demora se deu para escolher a melhor solução para reforçar a estrutura. Eles sustentam que mesmo na medição original, com os cálculos da época da construção do estádio, a estrutura já estava comprometida – citando erro de projeto e a falta de análise de cargas horizontais no túnel de vento feito no Canadá, o que, por outro lado, o Consórcio RDR nega.
– Esse vento é centenário. A gente não esperava que em alguns meses teríamos esse tipo de vento mais forte. Não podíamos começar o reforço antes de escorar e não podíamos escorar sem ter o projeto pronto. Demoramos muito para escolher a solução. Nesta fase eu não estava participando. Os projetistas eram os alemães, mas eles queriam colocar o estádio abaixo. Não queriam ter responsabilidade num negócio que eles não fizeram – revela Szilard, antes de atacar Gilberto Curi. – Não se pode dizer qual a segurança da estrutura olhando para ela, tirando retrato da estrutura. Isso não é sério. Eu, pessoalmente, acho que deviam cassar o diploma de quem diz uma besteira dessa. Conheço bem o Gilberto, mas ele está sendo pago para isso. Não é declaração séria.
Crea-RJ: exercício ilegal e volta para o muro
Em 2014, o Crea-RJ, ao contrário da Abece, se manifestou falando em erro de projeto e também de montagem do estádio. Em publicação de fevereiro, o coordenador da comissão que estudou o caso, José Schipper, dizia que “infelizmente tudo foi feito às pressas” e defendia punição para os responsáveis. Em contato com a reportagem, Schipper se esquivou de falar da punição aos profissionais e disse que quer conversar com os dois lados novamente.
– A briga é entre eles. Cada um diz uma coisa. Estamos estudando o que fazer – disse Schipper.
Consultado pela reportagem para falar do projeto, o verificador da obra Tiago Abecassis, que não assinou o projeto final – segundo a Odebrecht pela falha no projeto; de acordo com D`Alambert e o primeiro consórcio pelas falhas de montagem, disse que por força de contrato não poderia dar entrevista. O Crea-RJ denunciou na época da interdição que Abecassis estava trabalhando de maneira ilegal no Brasil, sem registro no conselho de engenharia.
– A Tal Projecto foi contratada como empresa consultora, tanto por um com pelo outro consórcio. Não fomos os responsáveis oficiais dos projeto entregues às autoridades. Nunca compreendi essa alegação por parte do Crea-RJ – disse, por e-mail, o representante da Tal Projecto.
Botafogo promete ação contra a Prefeitura
Em contato com a reportagem do GloboEsporte.com, o presidente do Botafogo, Carlos Eduardo Pereira, adiantou que o clube vai entrar com processo contra a prefeitura do Rio e vai buscar ressarcimento, via Justiça, dos prejuízos sem a utilização do estádio do qual é concessionário.
– Ainda estamos quantificando os prejuízos. Claro que entrar com ação contra a prefeitura quer dizer este processo leva anos e, em caso de vitória, recebemos por meio de precatórios. Mas não quero falar em valores. Ainda é muito precipitado. Mas tivemos prejuízo claro – diz Pereira.
Questionada sobre as alegações do primeiro consórcio, a respeito do novo estudo e das mudanças na execução da obra, a prefeitura respondeu em nota o seguinte: “O prefeito do Rio, Eduardo Paes, determinou a interdição do Estádio Olímpico João Havelange, após receber do Consórcio Engenhão, formado pelas empresas Odebrecht e OAS, um laudo detectando problemas estruturais em sua cobertura. Um monitoramento de rotina realizado pelo Consórcio constatou risco à segurança dos frequentadores em determinadas condições, como baixa temperatura e alta velocidade de vento, por exemplo. Para priorizar a segurança da população optou-se pelo fechamento do estádio. Os custos da reforma foram integralmente assumidos pelo Consórcio Engenhão, sem ônus aos cofres públicos.
Fonte: GE
Texto muito grande! Vou esperar virar filme.
E ninguém vai preso!. Kkkk