Entre tantas cenas memoráveis de “Boleiros – Era Uma Vez o Futebol…”, do caríssimo Ugo Giorgetti, a frase de Lima Duarte para Marisa Orth se destaca como testemunho do poder irresistível deste jogo. Edil, técnico do Palmeiras, se preocupa com a presença da mulher sedutora próxima à mesa de jantar de seus jogadores na véspera de um clássico, e, após mandá-los a seus quartos, diz a ela que “a senhora não sabe o que é um Palmeiras e Corinthians…”.
O filme tem quase vinte anos, é de uma época em que jogos como esse eram disputados com estádios divididos pelas respectivas massas de torcedores, um tempo distante, em todos os aspectos, das restrições atualmente impostas ao encontro que inspirou a cena escrita por Giorgetti. Fosse hoje, diante de clássicos realizados com metade do próprio espírito, o subtítulo da obra seria uma descrição precisa do estado de coisas, e a frase de Edil teria de ser alterada para “a senhora não sabe o que era um Palmeiras e Corinthians…”.
Ela também não saberia o que era um Fla-Flu. A mutilação do futebol chegou ao Rio de Janeiro com os clássicos de torcida única, esse palhativo preguiçoso que pretende resolver problemas por inação, e mesmo que a decisão da Taça Guanabara seja realizada sem proibição de acesso, o dano causado nesta semana foi colossal. Eram quase cinco horas da tarde de ontem quando a Justiça do Rio de Janeiro autorizou o jogo com duas torcidas, menos de quarenta e oito horas antes do início de um encontro que correu o risco de não acontecer, por boicote dos clubes, ou de ser disputado a portas fechadas.
O Fla-Flu é um ícone brasileiro e uma propriedade de todos. Quem consegue enxergar o futebol como um bem comum, algo que transcende o mundinho vaidoso do fanático, é imediatamente transportado ao (antigo) Maracanã preenchido por todas as cores e sons que construíram a história não de um jogo, mas de uma entidade. Houvesse uma embalagem para tanto conteúdo, nela se leria aquele aviso: “não pode ser vendido separadamente…”. O que se fez nesta semana foi a tentativa de vender a embalagem vazia, um embuste.
Um Fla-Flu com torcida única seria ultrajante. Um Fla-Flu com portões fechados, fúnebre. Um Fla-Flu “pacote completo”, resolvido às dezessete horas de sexta-feira, é um genérico que, periciado com competência, não terá efeito comprovado. Uma farsa organizacional no país que se orgulha de ter feito “a Copa das Copas”, mas celebra um clássico simbólico com uma semana de depreciação, argumentos constrangedores (bloquinhos de carnaval?!) e prazos irresponsavelmente desrespeitados, para, no limite do limite, informar duas torcidas de que poderão ir ao Engenhão. É a brasilidade clássica.
Ressalte-se, como sentimento de consolação, a postura dos dois clubes, firmes em defesa do que é certo e dispostos a manter o aperto de mãos. Em retrospecto, talvez devessem ter tomado a decisão de ir para outro estado – a experiência recente no Pacaembu, apenas como exemplo, foi um sucesso – e evitado a tragicomédia que se apresentou nos últimos dias. Ou se recusado definitivamente a jogar, como protesto que teria repercussões importantes, embora criasse outros problemas de calendário. De qualquer forma, o episódio injeta sobrevida à utópica noção de parceria entre agremiações e é uma prova do que podem alcançar, juntas.
Permanece a esperança de que o clássico decisivo da Taça Guanabara comece, transcorra e termine em paz, apesar das ansiedades e tensões estimuladas durante toda a semana. Que a venda apressada de ingressos não conduza ao caos e ao arrependimento. E que a violência cometida contra o clássico desperte as “autoridades” para a necessidade urgente de tomar providências, não o contrário. Assim como a personagem de Marisa Orth em “Boleiros”, elas não fazem a menor ideia do que é um Fla-Flu.
Fonte: André Kfouri | Lancenet
palhativo não neh fera!!! jornlista desse naipe não pode cometer esse erro!!!