A frustração é clara. Assim como o arrependimento. E o sorriso fácil percebido em um rápido contato só perde a vez quando o assunto é futebol para Célio Júnior. Afinal, a joia do Flamengo no início da década passada viu a vida mudar, “o mundo girar” e toda as perspectivas de ser tornar um grande meio-campo irem por água abaixo com o tempo… E com os erros. Ele, que chamou a atenção do Roma, chegou a receber R$ 22 mil por mês na base e ser tomado pelos elogios na Gávea, mas viu o sucesso escorrer pelos dedos. Pelos pés. E, acima de tudo, pela cabeça.
– Ele (Célio Júnior) jogava muito. Era um jogador de alto nível no meio de campo. Tinha uma boa velocidade, fazia gols, sabia chegar na área. Foi campeão comigo várias vezes, tinha muito talento – disse Adílio, ídolo do Flamengo, ao GloboEsporte.com, quando perguntado sobre quem era Célio Júnior, seu ex-comandado na base rubro-negra.
Mas aquele meia canhoto apontado como promissor, hoje, aos 30 de idade, foi vencido pelo glamour, pelo deslumbre, por si próprio, como ele mesmo admite. Cansou-se de sentir saudade da família por tão pouco e dos duros golpe do futebol após rodar mundo a fora. Pendurou as chuteiras aos 28 anos de idade, no São Gonçalo, em 2015.
Célio Júnior atualmente trabalha como porteiro em um empresa em Niterói. Orgulha-se disso e faz questão de deixar claro. Muito pelo apoio da família, da esposa e do filho Luan, de sete anos. Mas tem certeza que a vida levada hoje no bairro Trindade, em São Gonçalo, poderia ter tomado outro rumo se não fosse alguns motivos: ouvir quem não deveria e deixar, principalmente, a bebida atrapalhá-lo.
– Cometi muitos erros. Muita bebida, muita balada. Bebia muito, as noites de sono eu não tirava mais. Posso dizer com 100% de certeza que a bebida atrapalhou a minha carreira. Teria sido diferente – relata Célio.
Célio Júnior chegou à base do Fla em 1998. Sempre foi destaque na geração que revelou nomes como Renato Augusto, Kayke e que, liderada por Adilio, tornou-se uma das mais vitoriosas nas categorias inferiores do clube. Chegou a receber sondagens de clubes europeus na época – um deles, o Roma, que, segundo Célio, inclusive fez uma proposta quando tinha entre 17 e 18 anos – e encantou o técnico Abel Braga durante treinamentos no ano de 2004. No final de 2005, já ganhando um elevado salário nos juniores, foi promovido ao elenco principal.
No entanto, o jovem que outrora ganhava nome e era uma aposta certeira, esbarrou na vida exuberante, nas cifras altas – e ludibriadoras – e nas adversidades. Pouco recebeu oportunidades no time de cima – fez apenas dois jogos entre 2006 e 2008 -, encarou empréstimos a clubes de menor investimento do Rio, como Goytacaz, Cardoso Moreira e Portuguesa e, ao final de 2008, apoiado por um empresário italiano que tomava conta de sua carreira, optou por não renovar o contrato com o Rubro-Negro. Decidiu, então, viver o sonho europeu, na Itália.
Mas a expectativa de ir para um grande centro não se cumpriu. Enganado, foi levado para o Bellinzona, da Segunda Divisão da Suíça. Viveu, ali, o pior momento na carreira – talvez, da vida. Tentou outra vez na Bélgica. Em vão. Sozinho, voltou ao Brasil para jogar em times como América de Teófilo Otoni, Tombense, Valeriodoce-MG e na Croácia, em 2012. Durante o período, conviveu com o racismo na Europa na Suíça e na Croácia, a realidade dura e o arrependimento.
– Com certeza (o sucesso subiu a cabeça). Imagina um cara que ganha R$ 1 mil por mês e do nada passa a ganhar R$ 22 mil? Claro que vai mudar a sua cabeça. Quanto mais você ganha, mais você quer gastar. Então eu fui junto com o que o dinheiro me oferecia. Mas a vida é assim, um dia você tá em cima, outra hora você tá por baixo. Era para eu ter parado com isso para poder depois falar a palavra-chave: estabilidade. Curti muito, aproveitei muito, mas poderia ter parado com aquelas coisas.
Hoje, pai de família, Célio Júnior tem planos. Sonha em fazer uma faculdade e cursar, de repente, a educação física. Irreverente, descontraído e dono de um sorriso fácil de ser percebido, o ex-jogador garante não se remoer pelo passado, muito pelo que construiu. Mas admite: o peso de não ter se tornado tudo aquilo o que todos imaginavam ainda lhe incomoda.
– Muita gente fala “Pô, Célio, você era uma promessa”. Eu tento explicar para todo mundo o que aconteceu. Mas eu sei que não é o fim do mundo, não. Claro que não foi como eu planejei. Mas têm muitos que jogaram comigo e que hoje não têm uma casa, um emprego e, graças a Deus, eu consegui isso. Mas me dói as vezes quando dizem que hoje eu estou acabado. Só que eu tenho que levar. Hoje tenho minha família e não posso parar, abaixar a cabeça.
Confira a entrevista com Célio Júnior na íntegra:
Passagem no Flamengo
– Eu cheguei no Flamengo em 1998. Eu comecei na base do Flamengo como uma grande promessa. A expectativa em cima de mim era muito grande. Tive muitas propostas de fora, como do Roma, que veio me procurar quando eu tinha uns 17, 18 anos. Com essa procura do Roma, de uma salário de R$ 1.500 mil, R$ 2 mil, eu fui ganhar R$ 12 mil. Eu fiquei deslumbrado, uma coisa fora da realidade na vinha vida.
Renato Augusto imparável
– A gente tinha muita história. Na nossa época, o Renato Augusto era banco, porque acho que era uns dois anos mais novo. Aí a gente, eu Vinícius Pacheco, o Willian Amendoim, o Marcinho, que hoje está na Portuguesa-RJ, tentava tomar a bola dele e não conseguia. Todo mundo voltava do treino acabado, porque não tinha como pegar o homem, era muito diferenciado. A gente ia para o treino junto pensando como a gente ir parar o Renato. Tinha como não (risos).
Farra com Egídio e o castigo do pai
– Com o Egídio tem uma história muito engraçada. Meu pai era muito brabo. Falei para ele “Vamos para um pagode. Tem camarote, essas coisas”. Fomos nos divertir e depois iríamos para o treino no outro dia. Ele ia dormir lá em casa. Só que o meu pai estava me esperando em casa à noite para poder lixar a casa. Saímos e chegamos umas três, quatro horas da manhã. Quando chegamos, meu pai estava com um balde de massa e uma lixa. Aí o Egídio falou “Uma hora dessas?”, e o meu pai falou “Estava esperando vocês saírem da baladinha”. Ficamos lixando a casa a madrugada inteira. Aí chamava o Egídio para ir lá em casa, e ele “Tá maluco”.
Salário alto e a saída do Fla, em 2008
– O salário só foi aumentando, R$ 14mil, R$ 22 mil. Uma coisa surreal. Mas chegou numa época no Flamengo que eu tive que escolher: renovar o contrato ou ir embora. Mas o Flamengo não queria aumentar mais o meu salário. O meu empresário era um italiano, que aqui no Brasil só trabalhava comigo. Ele disse que o Flamengo tinha que aumentar. Mas eu estava bem, era a hora para eu me firmar. Já tinha um salário alto, de R$ 22 mil. Aí o meu empresário falou “Agora você vai embora para a Itália”.
A ida para a Suíça
– Era hora de eu me colocar, fiquei muito submisso. Era para eu ter falado “Quero ficar”. Mas aí eu deixei ele tomar conta. Não falei nada. Acabou o contrato e fui para a Suíça jogar pelo Bellinzona, da Segunda Divisão. O empresário foi me falando mil coisas, que ia ser bom para mim, que todo mundo já me conhecia lá. Mas, na realidade, foi tudo diferente. Ninguém me conhecia.
Volta da Europa e a dura realidade
– Saí da Suíça e fui para o Eupen, da Segunda Divisão da Bélgica. Fui com o mesmo empresário. Mas lá eu já não estava vendo mais dinheiro nenhum. Cara, sai ganhando bem daqui, comprei minha casa, apartamento, mas lá eu não via mais dinheiro. Fiquei pouco tempo no Eupen e sai do empresário, falei “Não dá mais, vou seguir sozinho”. Voltei para o Brasil e foi acabando o dinheiro. O dinheiro que consegui no Flamengo foi indo embora. Voltei para o América de Téofilo Otoni-MG e aí fui caindo, entrei na realidade verdadeira do futebol. De mais de R$ 20 mil que eu ganhava por mês na base, passei a ir para os clubes ganhar R$ 4 mil. Rodei por Tombense, depois Sinop, vim para o Rio. Joguei no São João da Barra com o Andrade, que, assim como o Adílio, me ajudou demais. Aí fechei minha conta no São Gonçalo, no Rio, em 2015. Não dava mais não. Pensei “Tenho filho, sou casado. Não adianta mais ir para longe ganhando pouco”. Eu, ou ficava em casa com a minha família, quando posso ter meu sábado e domingo de folga, ou fico viajando ganhando pouco e deixando de ver o meu filho crescer.
Experiência e racismo na Croácia, onde jogou pelo Karlovac
– Na Croácia eu não conseguia entender nada. Eu era o único negro na cidade. O pessoal do clube não deixava eu sair na rua sozinho, porque tinham medo do preconceito. Uma pessoa do clube sempre me levava para o treino. Mas teve um dia que eu decidi ir sozinho. Aí eu fui andando. A maioria do povo me abraçou, muitos iam na minha casa. Vou dizer que 80% das pessoas eram bacanas. Algumas tenho até contato hoje. Mas tinham, sim, esses negócios de racismo. De você entrar num lugar, e os pais puxarem as crianças para não chegarem perto. Lá eu passei seis meses e só recebi um.
Racismo parte 2 e a pior parte
– Na Suíça tinha mais ainda (racismo). Passei esse negócio de preconceito até com jogador, por ser brasileiro. Com alguns dizendo “Não vai conseguir. No Brasil é só futebol e samba”. Tive que botar a cabeça no lugar até verem que eu ia para dentro. Na Suíça foi a pior parte. Foi quando eu pensei em desistir pela primeira vez.
“Fui junto com o dinheiro”
– Com certeza (o sucesso subiu a cabeça). Imagina um cara que ganha R$ 1 mil por mês e do nada passa a ganhar R$ 22 mil? Claro que vai mudar a sua cabeça. Quanto mais você ganha, mais você quer gastar. Então eu fui junto com o que o dinheiro me oferecia. Mas a vida é assim, um dia você tá em cima, outra hora você tá por baixo. Era para eu ter parado com isso para poder depois falar a palavra-chave: estabilidade. Curti muito, aproveitei muito, mas poderia ter parado com essas coisas.
“Confiei em quem não era para confiar”
– Hoje posso dizer que já passou. Foi bom (o período no futebol). Mas para mim hoje tudo é minha família. Quem mais me ajudou foi a minha família, a minha mulher. Amigos, hoje sei que tenho meu pai, minha mãe, minha esposa. Confiei em muita gente que não era para confiar. Hoje eu tenho consciência que só tenho que agradecer a eles. Tenho minha esposa, meu filho Luan.
O reconhecimento nas ruas e a nova vida
– Hoje eu moro na Trindade, onde nasci. Trabalho em uma empresa em Niterói, que faz canos de petróleo, essas coisas. Trabalho na portaria, fazendo revista, na entrada e saída de carro também. Aí também venho estudando para poder ir para a faculdade, fazer uma educação física. Trabalho um dia sim e outro não. As pessoas que me reconhecem falam “Parou por quê? Você jogava muito, não pode parar”. Mas não estava valendo mais a pena. Até minha esposa não acredita que eu jogava (risos). Mas ela chegou a ver, sim.
“Dizem que estou acabado”
– É uma realidade totalmente diferente do que eu vivia. Muita gente fala “Pô, Célio, você era uma promessa”. Eu tento explicar para todo mundo o que aconteceu. Mas eu sei que não é o fim do mundo, não. Claro que não foi como eu planejei. Mas tem muitos que jogaram comigo que hoje não têm uma casa, um emprego e, graças a Deus, eu consegui isso. Mas me dói às vezes quando dizem que hoje eu estou acabado. Mas tenho que levar. Hoje tenho minha família e não posso parar, abaixar a cabeça.
“Eu era o cara, sabe?”
– Assim, não vou dizer que sou frustrado, porque tenho a família que consegui. Tudo o que consegui foi por causa da minha família. Perdi muitos amigos, porque eu era o cara, sabe? Mas eu fico triste mesmo por não poder ter ajudado mais a minha família. Poderia ser um pai de família que ganharia R$ 20 mil por mês.
Os conselhos de Adílio
– Eu tenho que agradecer ao meu pai, que eu nunca fui próximo, mas sempre me dava esporro, e ao Adílio, que era um cara que conversava muito. Ele sempre dizia “Você pode ser ídolo, viver o que você está vivendo hoje, mas muitas pessoas vão se aproximar de você e tentar tirar as coisas de você”. Eu nunca esqueci disso. Ele teve uma influência muito grande na minha vida.
Os erros
– Cometi muitos erros. Muita bebida, muita balada. Tinha dia que eu saia e ia treinar. Quando você está novo, você vai e faz a primeira vez, a segunda vez e dá tudo certo, você corre pra caramba. Mas, com um tempo, isso te atrapalha. Ainda mais eu que era conhecido por ter um pulmão privilegiado. Bebia muito, as noites de sono eu não tirava mais. Posso dizer com 100% de certeza que a bebida atrapalhou a minha carreira. Teria sido diferente. Eu gostava muito de um pagode. Mas hoje estou mais tranquilo.
Distância do futebol
– Raramente eu jogo. Só gosto mesmo de acompanhar. Às vezes vou na rua e jogo uma bola, mas é raro. Sou Flamenguista doente, torço muito pela galera que jogou comigo, o Renato Augusto, o Vinicius Pacheco, o Amendoim. Não perdi tanto as amizades que fiz na bola quando parei de jogar.
Muito triste, ainda mais tratando-se de um jogador q realmente tinha potencial, mas q sirva de exemplo p/ os mais novos na base ! Tem q aproveitar, agarrar as oportunidades e sempre aprimorar a técnica com mais treinamentos. Qual jogador (hj em dia) q fica depois do horário no campo treinando faltas (como Zico e tantos outros jogadores faziam antigamente) ?
Não me recordo desse rapaz.
Ele, Nélio, Diego Mauricio, L.Antônio e tantos outros que se perderam por ter a cabeça fraca.
“Era hora de eu me colocar, fiquei muito submisso. Era para eu ter falado “Quero ficar”. Mas aí eu deixei ele tomar conta.”
Que Vinícius Jr. siga os exemplos, não falo por ser flamenguista, mas pelo fato de o moleque ter um futuro gigantesco pela frente como tinha o Célio. SRN