Sede da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, Centro do Rio de Janeiro, 27 de novembro de 2012.
Eduardo Bandeira de Mello, presidente eleito do Flamengo e Rodrigo Tostes, futuro vice de finanças, se reuniram com os procuradores do órgão para fazer o levantamento das dívidas do clube.
— A ideia era entender um pouco da situação, o tamanho da encrenca que a gente tinha se metido. A gente sabia que o Flamengo devia três, quatro meses de salário, estava com receitas penhoradas por débito com a Fazenda Nacional. Eu já estava pensando em fazer um discurso dramático porque sabíamos que o Flamengo estava numa situação que requeria muitos sacrifícios. Ao longo da reunião foram surgindo tantas informações negativas que resolvemos tomar uma atitude mais drástica ainda. Nós íamos receber na semana seguinte, a primeira parcela do contrato com a Adidas, das luvas do contrato que o Flamengo havia acabado de assinar. Nós falamos com o procurador que esse dinheiro iria todo pra lá —, disse Bandeira ao PodFla.
Ainda em dezembro daquele ano, o Flamengo havia assinado um contrato de dez anos com a Adidas. O acordo chegava ao valor estimado de R$ 363 milhões no total. Só em janeiro de 2013, o clube receberia R$ 38 milhões de luvas. Havia uma vã ilusão de poder usar a verba para reforçar a equipe, mas o valor foi quase todo para a Fazenda. Uma maneira de mostrar que os dirigentes queriam, de fato, colocar as contas em dia. Bandeira e Tostes tiveram apoio do grupo e assim foi tomado o primeiro ato da nova gestão.
OS EXECUTIVOS E O NOVO MODELO DE ADMINISTRAÇÃO
Pelo estatuto, o Flamengo tem um modelo pré-definido de gestão. O executivo, que é o Conselho Diretor, é presidido pelo presidente e vice, eleitos pelos sócios. O restante da composição é preenchido pelos vice-presidentes, nomeados pelo mandatário eleito. Até 2012, eram esses dirigentes que tocavam o dia a dia do clube. Os funcionários que estavam abaixo na hierarquia, não tinham autonomia para grandes decisões, o que muitas vezes dificultava o andamento de muitas ações, pois precisavam esperar pela ida do voluntário à Gávea para assinar um contrato, por exemplo.
Na administração de Eduardo Bandeira de Mello, isso mudou. No dia da posse, ele anunciou os vice-presidentes para compor o Conselho Diretor: Cláudio Pracownik, administração e TI; Wallim Vasconcellos, futebol; Rodrigo Tostes, finanças; Alexandre Póvoa, esportes olímpicos; José Maria Sobrinho, remo; Flávio Willeman, jurídico; José Carlos Dias, Fla-Gávea; Adalberto Ribeiro, gabinete; Gustavo Oliveira, comunicação; Alexandre Wrobel, patrimônio; Carlos Langoni, reestruturação da dívida; Luiz Eduardo Baptista, marketing; Rodolfo Landim, planejamento; Flávio Godinho, relações externas e Rafael Strauch, secretaria geral.
Para tocar toda parte administrativa, o Flamengo contratou pela primeira vez um “Chief Executive Officer”, o CEO. O nome escolhido foi o de Marcelo Corrêa. Executivo do setor de energia. A partir daí, as principais pastas ganharam diretores executivos, com remuneração equivalente ao que se pagava no mercado a época: Paulo Pelaipe, futebol; Paulo Dutra, finanças; Bernardo Accioly, jurídico; Fred Luz, marketing; Felipe Bruno, comunicação; Clément Izard, Fla-Gávea; Marcelo Sá, patrimônio; e Marcelo Vido, esportes olímpicos e remo. Abaixo deles ainda tinham os gerentes.
Basicamente, o novo desenho administrativo ficou assim: Presidente e o Conselho Diretor (formado pelos VPs), responsáveis junto com o CEO pelo planejamento e estratégia; diretores executivos e por fim, os gerentes, que tocariam o dia a dia do clube. Também foi desenvolvido um plano de metas e bonificações para cada área.
— O primeiro ponto que a gente fez, foi tentar fazer um planejamento estratégico, tentar definir quais eram as principais ações que a gente deveria ao longo dos três anos, com metas anuais pré-estabelecidas, percorrer. Nós estabelecíamos as grandes metas, os processos internos do clube para fazer a melhoria da forma de trabalhar e acompanhávamos o orçamento —, disse Rodolfo Landim, vice de planejamento em 2013.
Com o time em “campo”, o trabalho começou. Paulo Dutra começou a organizar todo o procedimento do setor financeiro, renegociar dívidas, montar o orçamento e buscar créditos. Bernardo Accioly precisou organizar as mais de quinhentas ações trabalhistas do clube, que não pagava rescisões quando demitia e não depositava fundo de garantia (FGTS). Enquanto isso, Rodrigo Tostes tentava convencer a Ernst & Young para auditar o balanço do Flamengo. Eles não toparam inicialmente a empreitada, mas depois concordaram em fazer o levantamento das dívidas. Trabalho feito em conjunto com os departamentos de finanças e jurídico e que durou três meses.
Ações amargas foram tomadas ainda nos primeiros dias da nova gestão. Na tarde de 12 de janeiro, um sábado, em coletiva realizada na sede da Gávea, Eduardo Bandeira de Mello anunciou que o Flamengo estaria devolvendo Vagner Love ao CSKA Moscou. Ao lado do atacante, que parecia não estar satisfeito, o presidente explicou que houve um acordo com o staff do atleta e com o clube russo, que topou receber de volta o jogador e perdoar a dívida restante de 6 milhões de Euros (R$ 16,2 milhões na cotação da época). 4 milhões de Euros já haviam sido pagos (R$ 10,8 milhões na cotação da época).
Além de se livrar de uma dívida milionária, o Flamengo ainda conseguiu um alívio considerável na folha salarial. Vagner Love recebia em torno de R$ 500 mil e o clube ainda lhe devia R$ 1,2 milhão pelos direitos de imagem e luvas. Mesmo que a expectativa fosse por reforços, a direção fazia o contrário e se desfazia de um dos maiores jogadores do elenco na época, mas segundo Bandeira de Mello, a torcida apoiou as ações tomadas naquele momento.
— No domingo de manhã, dia seguinte a coletiva com Vagner Love, eu fui ao supermercado, estava empurrando o carrinho e aparece um torcedor apontando pra mim: “presidente, você mandou o Vagner Love embora”. Eu gelei ali, pensei que não ia nem completar um mês na presidência do Flamengo e já estava preparado pro pior quando ele continuou: “fez muito bem, a gente não tinha como pagar a ele, você tá certo” e me deu um abraço. Eu relaxei e vi que a torcida ia comprar o nosso barulho —, revelou Bandeira de Mello.
Os esportes olímpicos também tomou decisões amargas. Em 28 de dezembro de 2012, dia seguinte a posse da nova direção, Alexandre Póvoa anunciou que não renovaria os contratos dos nadadores Cesar Cielo, Nicholas Santos, Tales Cerdeira e Joanna Maranhão e que daria fim a equipe adulta de natação, ficando somente com as categorias de base e escolinhas. Só o primeiro atleta, recebia R$ 100 mil e os salários estavam com atraso de três meses. Os primeiros cortes representaram um alívio de R$ 7 milhões na pasta, que fechou o ano com um déficit de R$ 14,5 milhões.
— A gente entrou em 2013 com um quadro muito delicado. Eram R$ 14,5 milhões de déficit. Depois da questão da natação e alguns outros cortes, conseguimos reduzir para R$ 7 milhões. Mas mesmo assim não foi o suficiente. Agora, vamos chegar a R$ 5 (por ano) —, disse Alexandre Póvoa na época.
Em março de 2013, novos cortes. O Flamengo anunciou o fim das equipes adultas de ginástica e judô. 28 atletas não teriam seus contratos renovados. Entre eles, Diego Hypolito, Daniele Hypolito e Jade Barbosa. O custo das duas equipes chegava a R$ 2 milhões por ano. Os salários também estavam atrasados. A decisão gerou enorme polêmica na imprensa especializada e de alguns torcedores.
— Achei isso uma falta de respeito, tenho 19 anos de clube. Não tem como dizer que não há dinheiro. Você tem no clube uma Jade Barbosa, campeoníssima da ginástica, uma Dani, que ajudou a levantar a ginástica do Flamengo. Não consigo entender como o marketing do clube não consegue resolver isso. Foi uma falta de respeito e de consideração que não tem tamanho por parte da nova presidência. Isso é uma retaliação à Patrícia Amorim, pelo ciclo passado —, disse ao GE Diego Hypolito ao ficar sabendo da decisão.
No fim de março, ocorreu o lançamento do programa de sócio torcedor, o “Nação Rubro-Negra”. O projeto oferecia ao torcedor prioridade e desconto na compra de ingressos e de outros produtos via “Movimento por um Futebol Melhor”, da Ambev. Os valores variavam de R$ 39,00 199,90 em seis categorias. Com Zico como garoto propaganda, Luiz Eduardo Baptista, o vice de marketing, rebateu as críticas recebidas na coletiva, que ainda contou com um sincero Eduardo Bandeira de Mello: “É um programa que nos vai fazer sair do buraco e ganhar outro patamar em termos de administração”, disse. Era uma nova receita para o clube.
As ações administrativas e financeiras foram trazendo resultados. Em 03 de abril, em nota oficial, o Flamengo revelou que conseguiu obter todas as certidões negativas de débito (CND’s), fruto do equacionamento das dívidas fiscais nas esferas dos Governos Federal, Estadual e Municipal. No total, foram seis certidões obtidas: conjunta de tributos federais e dívida ativa da União; Previdenciária (INSS); Regularidade do FGTS; Negativa de Débitos Trabalhistas (CNDT); e Regularidade de Tributos Estaduais e Municipais.
Com a obtenção das CND’s, o Flamengo pôde fechar o patrocínio com a Caixa Econômica Federal. Eles ocuparam a área nobre do Manto Sagrado por R$ 25 milhões e o contrato tinha validade de um ano. Ainda de posse das certidões, o clube se beneficiou das Leis de Incentivo ao Esporte para as categorias de base de futebol e também os esportes amadores. Modalidade que também se beneficiou da lei foi o basquete, na parceria com a rede de telefonia TIM.
No dia 11 de abril, em coletiva realizada na sede da Gávea, Eduardo Bandeira de Mello, Luiz Eduardo Baptista, Rodrigo Tostes e Flávio Willeman, apresentaram o resultado do levantamento feito junto com a Ernst & Young de toda dívida do clube. O tamanho do endividamento descoberto foi de R$ 750 milhões, mais da metade do que foi declarado no balanço de 2012, o último da gestão de Patrícia Amorim, que foi de R$ 323 milhões. Para alguns, o débito era impagável. Torcedores se assustaram com o resultado.
Vale uma observação sobre esses números levantados de R$ 750 milhões em dívidas. Como explicado posteriormente, esses valores foram projetados, ele somava o total de todas as dívidas tributárias, ações trabalhistas, mas sem serem exatos. Cláudio Pracownik, vice de finanças do Flamengo em 2015, esclareceu em entrevista ao Blog Ser Flamengo.
— Na verdade, R$ 750 milhões projetado é porque naquela época, não foi possível fazer uma auditoria completa no clube, a gente tinha que trabalhar. Haviam esqueletos no armário que a gente não conseguia precisar, mensurar, dar um valor preciso para aquele passivo potencial. Alguns foram acontecendo, estão acontecendo… O caso do Ronaldinho, você não sabe o valor exato, a gente está otimista com o desfecho desse processo, mas é difícil precisar. Tinham questões tributárias que a gente não sabia como seriam resolvidas. Então, a gente usou um cenário base, o cenário base era de R$ 750 milhões.
Ações de transparência foram adotadas. As pastas principais passaram a fazer relatórios aos sócios e torcedores, mostrando as suas atividades e planejamento. O clube também passou a divulgar o balanço trimestralmente no site oficial. Uma forma de acompanhar o andamento e a evolução financeira que estava sendo feito.
A direção do Flamengo ainda fez um contrato com a Odebrecht para jogar no Maracanã. O que ajudou no impulsionamento da receita com bilheteria. Sem penhoras, os valores passaram a ir todo para o caixa do clube. Somados os valores com o sócio torcedor, os números ultrapassaram a casa dos R$ 60 milhões. Fora as novas receitas oriundas dos patrocínios.
No campo, o Flamengo não venceu o Campeonato Carioca, brigou contra o rebaixamento no Brasileirão, mas venceu a Copa do Brasil. Segundo Rodrigo Capelo sem seu livro, “O futebol como ele é”, a política de austeridade financeira só foi possível por conta dessa conquista, que conseguiu acalmar os ânimos de sócios e torcedores mais exigentes.
Liderado por Hernane e Elias, o Mais Querido foi avançando de fase na competição eliminando as melhores equipes do país até enfrentar o Atlético-PR. Empate em 1 a 1 no primeiro jogo, no Sul e 2 a 0 no segundo, disputado no Maracanã.
Em 2015, o Flamengo mudou o seu estatuto. Após ser apresentado e proposto pela direção, os conselheiros aprovaram a emenda da Lei de Responsabilidade Fiscal Rubro-Negra. O dirigente que causar qualquer ato lesivo ao patrimônio e à imagem do clube, poderá responder com seus bens, mesmo após o fim do seu mandato. Essa alteração fez com que o Fla se adequasse as normas para aderir ao Profut, programa do Governo Federal, que ajudou diversos clubes de futebol com abatimento de suas dívidas fiscais, mediante a contrapartidas de boa gestão.
Os feitos administrativos e financeiros foram os maiores legados deixados pelas gestões de Eduardo Bandeira de Mello, iniciando naquela visita em 27 de dezembro de 2012 à PGFN para saber o que o clube devia. O novo modelo de gestão adotado foi enraizado no Flamengo e nenhum torcedor permitirá que seja diferente.
— A estrutura do Flamengo hoje é 100% profissional. Não importa quem ganhe a eleição. A estrutura é profissional. O clube já está estruturado e nós vamos seguir —, palavras de Flávio Godinho em 2015.